Na dança dos gêneros

Dois filmes em cartaz no streaming podem ser vistos como se contassem uma mesma história com diferença de um país e cerca de sete anos. O documentário francês Pequena Garota e o docudrama belga Girl abordam uma criança e um adolescente com disforia de gênero, a não coincidência entre o corpo e os sentimentos. Sasha, de oito anos, e Lara, de 15, poderiam ser uma só personagem, vista em momentos diferentes de sua luta contra a condição masculina de nascença. Ambas estudam balé e contam com a cumplicidade férrea e a dedicação total da mãe, no caso de Sasha, e do pai, no caso de Lara.

Sasha, menina em corpo de menino

O tema da criança transgênero tem aparecido no cinema com frequência nos últimos 20 anos. Em geral, como ficção, a exemplo do memorável e relativamente pioneiro Minha Vida em Cor de Rosa (1997), de Alain Berliner. A história do menino que se reconhece como menina e tenta assim se afirmar reaparece agora com o aval da realidade em Pequena Garota (Petite Fille). O documentário de Sébastien Lifshitz aborda o caso de Sasha, que desde muito cedo se sente menina num corpo de menino.

A família, extremamente harmônica e madura, lhe dá todo apoio e luta para que ela seja aceita no feminino pela escola, pelo conservatório de balé e pelo entorno social. A aproximação intimista da câmera flagra vários momentos em que o sofrimento de Sasha aflora na sua expressão, nas lágrimas e nos silêncios. Nesse ponto, o filme deixa claro quanto é profundo e espontâneo o mal-estar de quem se sente no corpo errado. Em Sasha, não se pode dizer que é uma construção cultural.

Para além do momento presente, o grande desafio que Sasha e sua mãe têm pela frente diz respeito tanto a questões físicas (hormônios, bloqueio da puberdade) quanto aos infortúnios sociais que Sasha certamente enfrentará no futuro. Em dado momento, a mãe é aconselhada por uma psicóloga da Universidade de Paris a não se sentir culpada por ter desejado uma menina durante a gravidez.

Por meio de poucas falas para a câmera e muita observação de consultas, conversas e atitudes cotidianas, Lifshitz traduz delicadamente a complexidade, as várias camadas da situação. Mas o recorte quase exclusivo em Sasha e Karine deixou à margem alguns aspectos insinuados de maneira quase imperceptível. Um deles é o efeito que a dedicação intensiva da mãe a Sasha pode surtir sobre seus três outros filhos, dois deles crianças também.

Senti falta, ainda, de ouvir as razões de professores e diretor da escola para não concordarem com a presença de Sasha usando roupas femininas sem uma confirmação médica do seu quadro. Estes são apenas referidos como vilões pelos pais. Um esforço do documentário na direção deles poderia angariar mais peso como arrazoado cinematográfico e como argumento político.

♦ Pequena Garota está nas plataformas iTunes, Apple TV, Google Play, Youtube, Net Now, Vivo Play e Sky Play. 


Lara, o ódio ao pênis

Imaginemos Sasha sete anos depois, esfolando os pés e a cabeça para se ajustar aos movimentos de bailarina e preparando-se para a cirurgia que vai confirmá-la como mulher. Ela agora é Lara (Victor Polster), personagem baseada num  caso real, e o filme é Girl, de Lukas Dhont. O incômodo com a condição masculina ainda não é suficiente para definir a preferência sexual de Lara. Tudo o que ela faz é no sentido de esconder o pênis, fisicamente com esparadrapos dolorosos e simbolicamente com um sorriso tímido que é pura máscara para seu sofrimento.

Lara é alguém que se defende do mundo retraindo-se e calando-se, inclusive com o pai que lhe presta completo apoio. A ansiedade de adolescente se volta para os seus dois únicos objetivos: o balé, onde enfrenta dificuldades técnicas, e a transformação do corpo à base de hormônios. A demora em ver resultados a levará a um ato extremo, para a personagem e para o espectador.

Como em Pequena Garota, testemunhamos a angústia silenciosa e os problemas de autoaceitação da personagem disfórica. Os ferimentos nos pés da bailarina são a expressão física da sua dor emocional. Lara passa por cenas de humilhação que a fazem fechar-se ainda mais em si mesma e odiar o corpo que tem. Numa tentativa canhestra de se afirmar como mulher, ela chega a se aproximar de um vizinho, o que não parece ser de muita ajuda.

Lukas Dhont organiza sua narrativa em muitas microcenas, num acúmulo de pathos em torno das ações e silêncios de Lara. Um naturalismo radical aproxima o filme do registro documental, para o que contribui a esplêndida atuação de Victor Polster, ator cisgênero estreante e estudante da Academia Real de Balé de Antuérpia. Por essa performance sem muitas falas, mas com uma linguagem corporal repleta de sutilezas, ele ganhou o prêmio de interpretação da mostra Un Certain Regard de Cannes. Na mesma mostra, Girl levou também os prêmios de melhor direção e da crítica internacional.

A direção precisa, a câmera aderente aos movimentos dos atores e a montagem rica em elipses e supressões que atiçam nossa imaginação são outros fatores de engajamento no filme. Assistir a Pequena Garota e Girl nesta ordem é um bom caminho para se adquirir uma nova consciência sobre a identidade de gênero.

♦ Girl está na Netflix

2 comentários sobre “Na dança dos gêneros

  1. Pode publicar? A cultura no Estado do Rio de Janeiro pede socorro

    Encerra hoje, dia 28/12, o prazo para os contemplados nos editais da Lei Aldir Blanc RJ entregarem seus documentos. Devido a uma obrigatoriedade da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa RJ de abertura de contas no bradesco, milhares de trabalhadores da cultura poderão ficar sem receber, tendo em vista o dinheiro deve ser depositado até o dia 31/12. Depois disso volta para a União.

    Trabalhadores da cultura de todo o estado estão desesperados em diversas agências do Bradesco aguardando a emissão do extrato zerado, documento que comprova a existência da conta, porém os gerentes alegam que apenas um departamento de análise em SP pode autorizar a abertura.

    Precisamos pressionar o Bradesco para que efetive as contas e entregue este documento aos proponentes ainda hoje. A verba da Lei Aldir Blanc não impacta apenas no setor cultural mas em toda a economia estadual. Esta luta não é só da cultura, ela é de todos.

    #LeiAldirBlancRJ #CulturaVivaRJ #BradescoAbraNossaConta #ExtratoZeradoJá #CulturaImporta

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