Delírio e tolice em “Annette”

ANNETTE no Mubi

Leos Carax é um dos diretores que mais se concedem liberdade de criar, a despeito de coerência narrativa e convenções de verossimilhança. Basta ver Mauvais Sang, Pola X ou Holy Motors. Agora imagine o que pode Carax inventar com as licenças do filme musical. Especialmente se a música é de autoria do duo Sparks, que tampouco se curva às regras da composição melódica. Annette estica a corda até as portas do delírio.

Ao mesmo tempo, conta uma história melodramática e, quase sempre, incrivelmente tola. Adam Driver é Henry McHenry, comediante stand up de humor melancólico, mórbido e provocativo. Numa cena, mostra a bunda à plateia, como fez certa vez Gerald Thomas no Theatro Municipal do Rio. Tem um romance glamouroso com a cantora lírica Ann Defrasnoux (Marion Cotillard). Deles nasce, em parto igualmente cantado, o bebê Annette, que em lugar de carne e osso tem madeira articulada. Não demora a que Baby Annette se revele um prodígio vocal, seguindo a vocação da mãe. Passa, então, a ser explorada pelo pai como um freak no mundo do showbizz.

Tudo ali é show – desde o prólogo, em que uma locução pede que a plateia se cale e pare de respirar enquanto durar o espetáculo. Nas apresentações de Henry, o público duela em coro com o artista. Nas de Ann, o palco se confunde com uma floresta. Nos megahows de Annette, a bonequinha flutua nos ares. Uma viagem de navio se converte em dança perigosa no convés debaixo de uma tempestade. Junte Moulin Rouge de Baz Luhrmann com Birdman e o terror Anabelle, e você chega perto de Annette. Sem que falte um tradicionalíssimo triângulo amoroso.

A ousadia de Carax só se compara a seu pendor para o kitsch e o despautério. Nesse filme, que abriu o último Festival de Cannes, ele põe em cena seu proverbial deslumbramento plástico em planos-sequência super elaborados e uma montanha russa cenográfica alucinante. As pseudo-canções do Sparks, à exceção do chiclete sonoro We Love Each Other So Much, são meros recitativos, um pouco na linha de Stephen Sondheim mas nem tanto. A sucessão de diálogos cantados requer uma certa paciência no decorrer dos 140 minutos de duração. O filme certamente seria melhor se fosse um pouco menor.

A par da excitação produzida pelos atrevimentos superficiais de Carax, o grande trunfo de Annette é a atuação muito física de Adam Driver, intensa em todo o arco dramático esdrúxulo do seu personagem. É uma pena que o roteiro expulse Marion Cotillard muito cedo da história. A graciosa manipulação das bonecas Annette preenche apenas relativamente esse vazio.

>> Annette está na plataforma Mubi.

P.S. O musical radiofônico The Seduction of Ingmar Bergman, do Sparks, pode ser ouvido no Youtube. Narra uma visita imaginária de Bergman à Hollywood dos anos 1950, quando ele entra em choque com o modo de produção cultural americano. É divertido.

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