Um vazio cheio de tudo

OS OSSOS DA SAUDADE em cinemas e no streaming

Palavra difícil de explicar, sentimento difícil de aplacar é a saudade. No cinema, tem sido objeto de documentários brasileiros como os de Paulo Caldas e Denize Galiao, ambos intitulados simplesmente Saudade. Agora nos chega o mais tocante e bonito já feito por aqui. Os Ossos da Saudade, de Marcos Pimentel, está chegando aos circuitos presencial e online.

Pimentel é um esteta do documentário, alguém que se preocupa tanto com a forma quanto com o que está dentro dela (leia aqui um pequeno ensaio meu sobre o seu cinema). Nesse novo trabalho, ele ouve sete pessoas de países lusófonos que vivenciam deslocamentos entre outras terras e o Brasil. Mais que isso, instala-as em cenários extraordinários que sugerem as ideias de margem, ruína, ausência, distância e memória.

A topografia vulcânica de Cabo Verde, galpões aruinados de Moçambique, escarpas limítrofes de Portugal, formações rochosas incomuns, uma cidade engolida pela areia e um cemitério de navios em Angola são algumas das locações visitadas pelos personagens enquanto ouvimos suas vozes sempre no extra-quadro. A câmera de Matheus da Rocha Pereira – parceiro de Pimentel desde 2008 – se move em panorâmicas compassadas que desvelam esses lugares aos poucos, num ritmo constante e encantatório. Eis um filme que renderia muito também no ambiente imersivo de um museu ou galeria de arte.

Rodrigo, brasileiro filho de portugueses, emigrou para Portugal a fim de construir vida própria longe da família, mas não escapou dos laços da saudade. A paraense Joana, por sua vez, vive desde criança em Moçambique, onde ensina capoeira, e se sente num entre-lugar, nem bem brasileira, nem totalmente moçambicana. A bailarina angolana Huíla fez uma licenciatura no Rio de Janeiro e, ao voltar para Angola, passou a compreender melhor o que é a saudade. Ela dá uma linda tentativa de definição: “É um vazio cheio de tudo”.

Rosânia é outra brasileira que se mudou há 24 anos para Moçambique, onde encontrou pertencimento para sua negritude. Adelmisa é da Guiné-Bissau, veio para o Brasil num programa de intercâmbio e ficou por aqui com o filho de um pai que morreu muito cedo. Por fim, o ambientalista caboverdiano Zé Melo tinha já uma nostalgia do Brasil mesmo antes de conhecê-lo.

Os Ossos da Saudade procura capturar algo que, na verdade, é inefável. Retrata uma gente de coração dividido entre duas ou mais terras, ligadas pela lusofonia e por nexos difusos através de mares imensos. Eles e elas são encorajados a meditar sobre as noções de casa, pertencimento, memória e desaparecimento. Terá a saudade uma cor, um cheiro ou algum tipo de materialidade? Entre os momentos mais bonitos num filme inteiramente prazeroso estão aqueles dedicados aos objetos em que cada uma daquelas pessoas condensa sua lembrança e sua saudade de outro lugar.

Afinal, o que faz uma pessoa ser o que é? Como os espaços e tudo o que neles habita contribuem para a formação de uma consciência de si e do mundo? Em última instância, até onde um filme pode nos levar para fazer essas coisas ecoarem em nossa própria sensibilidade?

>> Os Ossos da Saudade está na plataforma Olhar Play e, a partir de 22 de setembro, também em cinemas.

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