Satchmo para além do sorriso

LOUIS ARMSTRONG’S BLACK & BLUES no streaming

A imagem que a maioria de nós faz de Louis Armstrong é a do trompetista e cantor de riso largo, voz áspera e trompete perfurante que praticamente simboliza o jazz. O documentário Louis Armstrong’s Black & Blues reafirma essa efígie, mas acrescenta dimensões menos badaladas de Satchmo – ou Pops, como queiram.

Narrando vida e carreira de modo mais ou menos cronológico, o diretor Sacha Jenkins remonta às origens de Louis nos bairros pobres de Nova Orleans, onde a dieta da família passava por cabeças de peixe e sanduíches de couve. A música surgiu durante sua estada num orfanato. Quando de lá saiu e começou a tocar em clubes, a segregação racial o impedia de sentar-se à mesa com o público depois dos shows. Foi assim que nasceu o Satchmo rebelde, recusando-se a tocar onde não pudesse também ficar à vontade.

Uma rebeldia que se revelaria mais individual que coletiva. Louis foi muito criticado por não se engajar na luta pelos direitos civis, preferindo contribuir com doações e poupando sua boca preciosa de alguma bordoada nas marchas e protestos. Sua postura sempre sorridente e positivante (oh, yeah!) rendeu-lhe acusações de se render ao status quo racista do seu tempo.

Essa cautela política ocupa parte significativa do documentário, mas não tanto quanto o que de fato interessa sobre o “embaixador dos EUA com um trompete”. Louis aparece sendo entrevistado por Orson Welles e Dick Cavett, bem como em várias gravações domésticas que ele próprio fazia obstinadamente em rolos e rolos de fita. O filme abraça esse legado autobiográfico, ao lado de referências elogiosas de músicos como Artie Shaw, Wynton Marsalis, Leonard Feather e Archie Shepp.

Marcos importantes do percurso de Louis são a invenção do scat singing, as versões dolentes do hino dos EUA, as apresentações carismáticas diante do público, a viagem à “Mãe África”, os problemas cardíacos que acabaram lhe custando a vida e as declarações de amor a Lucille Armstrong, sua quarta e mais duradoura esposa. Algumas cenas de filmes pontuam uma presença cinematográfica de cerca de 30 títulos de ficção.

O documentário compila muitos personagens e informações que exigem atenção redobrada, principalmente de quem não é familiarizado com o jazz dos anos 1930 a 1960. O uso extensivo de colagens polui um pouco o visual do filme em troca de conferir alguma graça e agilidade.

Um notável depoimento do ator Ossie Davis ilustra o possível drama por trás da figura expansiva de Satchmo. Certa feita, Davis o surpreendeu distraído, olhando para o vazio com a expressão mais triste desse mundo. Ao notar a presença de alguém, ele prontamente abriu um sorrisão quilométrico, como que retomando de chofre sua persona pública habitual. Materiais como esse são capazes de iluminar uma personalidade com mais eficácia do que uma avalanche de dados.

>> Louis Armstrong’s Black & Blues está na plataforma AppleTV

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