20 anos depois

AMANHÃ

A Barragem Santa Lúcia, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, é um divisor de classes na cidade. De um lado fica o bairro de classe média alta Vila Paris, com edifícios vistosos chamados Montmartre, Ville de Paris e lojas como Delícias Fit da Cris, Fiori Instituto de Beleza e Animal Pet BH. Do outro, ergue-se a favela do Morro do Papagaio com seus muitos botecos, lan houses e mais de 20 igrejas evangélicas. Em 2002, quando o país iniciava um ciclo virtuoso, Marcos Pimentel observou que os moradores dos dois lados da barragem não se misturavam. Ele resolveu, então, reunir duas crianças negras da favela e um menino do lado oposto para um experiência documental.

O material ficou guardado até que, 20 anos depois, quando novamente o Brasil prometia superar um período lamentável de sua história, Pimentel decidiu procurar os três personagens. Assim nascia Amanhã, documentário que estreou no recente É Tudo Verdade.

As interações entre eles em 2002 eram relativamente tímidas. Julia, menina espevitada e inteligente, dominava as cenas, enquanto seu irmão Cristian constantemente fugia de casa e das filmagens. José Thomaz, o menino branco do “outro lado”, era retraído, talvez por nunca ter experimentado a liberdade dos amiguinhos da favela.

Duas décadas depois, a situação de Julia e Cristian espelhava muito do que se passou com a juventude menos assistida das grandes cidades brasileiras. Julia cresceu e se aquietou, teve dois filhos, formou-se cabeleireira e dedicou atenção e estilo ao seu corpo. Cristian, por sua vez, caiu na delinquência e cresceu entre abrigos e presídios. Para sorte do filme, saiu da prisão em 2022 e pôde reintegrar-se ao projeto, revelando talento de rapper e contando abertamente sua trajetória de pequenos crimes (algo que, segundo o diretor, ele fez questão de testemunhar no filme).

Amanhã retraça o destino dessa família, com destaque para a perspectiva meio fatalista da mãe de Julia e Cristian: uma casa demolida pela prefeitura, um filho desviado do caminho certo, uma filha que não deve vir a repetir a sua sina.

Marcos Pimentel, com a conhecida sensibilidade demonstrada em filmes como Sopro, A Parte do Mundo que me Pertence, Os Ossos da Saudade e Fé e Fúria, captura os momentos de emoção das pessoas diante de suas imagens do passado e das evidências do presente. O cotejo entre os dois tempos, embora não seja objeto de ênfase na montagem, produz uma impressão forte no espectador, na medida em que colhe uma grande sinceridade dos personagens.

Ao mesmo tempo, o documentário constrói uma expectativa interessante quanto à retomada do personagem de classe mais alta. O desfecho, em que pese o seu efeito sobre o filme e sobre os antigos amigos de filmagem, diz um bocado a respeito do abismo social brasileiro.

No entanto, não há dualismos simplórios quanto à polarização do país. Basta ver as posições de Julia e Cristian em relação aos governos do PT e de Bolsonaro. Os dois lados da barragem também podem se inverter, como sinalizam as imagens dos reflexos da favela e do bairro nas águas do lago.

O próprio filme também passa por uma mudança significativa entre os dois momentos. Em 2002, a equipe era inteiramente composta por gente de fora da comunidade do morro. Em 2022, dois dos quatro técnicos principais eram do local. Se Pimentel quiser voltar aos personagens em 2042, e eles concordarem, talvez seja tudo muito diferente. Quem é que sabe o que será o amanhã?

Abaixo, um pequeno depoimento de Marcos Pimentel ao blog sobre o processo do filme:

“O material de 2002 foi captado totalmente sem recursos e sem finalidade específica. Eu havia acabado de me mudar pra BH (nasci em Juiz de Fora e me mudei pra BH em 2001) e fiquei bem chocado com aquelas caminhadas em meia lua no entorno da Barragem Santa Lúcia. Tive a ideia de levar as crianças para conhecer as casas e universos umas das outras e reuni alguns amigos que topassem filmar isso comigo. Na ocasião, não tinha muita ideia do que faria com este material, só muita certeza de que registrar aquele processo me interessava muito. Depois de filmar, fiz um curta chamado Sobreviventes, que contém alguns fragmentos do encontro das crianças. Este curta circulou por festivais na época (2002) e até ganhou alguns prêmios. Só que nele não havia tempo de tela para abordar a complexidade dos processos que havíamos captado. Então, achei por bem deixar o material descansar. Aquele momento em que o Cristian olha pra câmera e me pergunta “Vocês vão voltar amanhã? Vão voltar? Hein?” nunca saiu de mim. Aquele era o último momento das filmagens de 2002, o fim de um domingo. No dia seguinte, eu sabia que não voltaria e sempre fiquei pensando no importante que seria para ele que nós voltássemos. Os anos se passaram, e eu e algumas outras pessoas que participaram daquela enxuta equipe de filmagem tivemos encontros e desencontros com o Cristian. O encontro de 2002 foi tão forte que nunca me deixou, e esses instantes em que voltei a vê-lo e que nossas trajetórias voltaram a se cruzar por alguns segundos me fizeram decidir voltar a esse material. Revi as seis horas filmadas em 2002 e senti que havia parte de um filme ali que poderia dialogar com as trajetórias e histórias de vida dos agora jovens que filmei na infância. E tirei o título do filme exatamente da pergunta que ele me fez no último momento das filmagens de 2002 e sobre a qual nunca deixei de pensar.

– Marcos Pimentel”

>> Amanhã está inédito no circuito comercial.

 

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