Ken Loach, conservador de esquerda?

VERSUS – A VIDA E OS FILMES DE KEN LOACH

“Como um cara desses pode fazer aqueles filmes?”, pergunta-se bem a propósito o ator Gabriel Byrne a respeito de Ken Loach, o mais esquerdista e engajado cineasta britânico do nosso tempo. Vendo Loach falar e orientar seus atores e equipes, é fácil compreender o espanto de Byrne. Kenneth Charles Loach é um homem calmo, ponderado, educado… Muito conservador, como sintetiza o produtor e amigo Tony Garnett. Para completar: “A questão é que ele nunca será dissuadido”.

O documentário Versus – A Vida e os Filmes de Ken Loach (Versus – The Life and Films of Ken Loach) faz um retrato tão suave e tranquilo quanto o próprio retratado. Loach foi abordado pela diretora Louise Osmond em 2015, durante as filmagens de Eu, Daniel Blake. A partir dessa base, o filme evolui cronologicamente, com destaque para os trabalhos menos conhecidos do diretor à época em que trabalhava para a BBC. Foi em telefilmes da série The Wednesday Play, como Up the Junction, Cathy Come Home e The Big Flame, dos anos 1960, que Loach trouxe para o cinema de ficção a classe trabalhadora britânica e os conflitos entre trabalho e capital. Deu seguimento ao panorama proletário do Free Cinema da década anterior. “A política é a essência do drama, a essência do conflito”, ele aponta como uma profissão de fé.

Essa fase e o longa Kes, que o projetou no mercado, recebem atenção bem maior que o período mais recente. Não é de todo mau, uma vez que ali estavam as raízes de sua obra e de sua opção pelos pobres e os sem voz. Depois que os tories tomaram o poder com Thatcher, Loach passou por uma década de relativo ostracismo, quando teve que fazer publicidade – até para o McDonald’s, o que ele relembra não sem corar de vergonha. Houve também um pequeno e mal sucedido ciclo de documentários, o que surpreende para um diretor que tem o realismo e a fidelidade à vida como padrão de sua ficção.

Versus não demonstra interesse em aprofundar uma análise da obra, nem esmiuçar os métodos de Loach. Suas considerações são singelas e levemente irônicas; as dos demais entrevistados são elogiosas e divertidas. Dos atores Loach espera que sejam vulneráveis e ao mesmo tempo seguros, pois disso depende sua dramaturgia. É bom vê-lo falar sobre isso. E saber que ele mesmo foi ator bissexto de teatro quando jovem.

Ken Loach anunciou o fim da carreira em 2014. Para nossa sorte, não cumpriu o prometido. Desde então, fez mais três longas. Enquanto dirigia Eu, Daniel Blake, perguntava-se se “esse velho diretor” não deveria estar entregue aos remédios e às meias elásticas. O sorriso maroto, no entanto, traía uma escolha já feita. Enquanto tiver saúde e houver desigualdades no mundo, o velho guerreiro seguirá empunhando a câmera.    

>>  Versus – A Vida e os Filmes de Ken Loach está disponível gratuitamente na plataforma Sesc Digital até 6 de março de 2024.    

4 comentários sobre “Ken Loach, conservador de esquerda?

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  3. Gostei muito desse documentário. Não vai muito fundo, é verdade. Mas revela a personalidade de Ken Loach, que é um gentleman o que não é nada mau para os tempos de brutalidade que vivemos. Há revolucionários, inclusive nas artes, com os quais eu não conviveria por mais de algumas poucas horas. Nem tudo do passado deve ser desprezado. A convivência com outros humanos, requer algumas regras simples que envolvem respeito e delicadeza. Freud que o diga.

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