A pornochanchada e a onça pintada: coisas nossas

O PAÍS DA PORNOCHANCHADA e DIÁRIO DE UMA ONÇA

A educação pela chanchada

O carioca Saul Lachtermacher (1926-1982) foi um realizador de cinema com atuação diversificada entre as décadas de 1950 e 1970. Ainda sob a égide da chanchada dos 50, dirigiu Dercy Gonçalves em Com Minha Sogra em Paquetá (1960). Nos primórdios do Cinema Novo, montou dois episódios de Cinco Vezes Favela (1962) e, mais tarde, foi diretor de produção do episódio de Eduardo Coutinho em ABC do Amor (1967). Mas sua marca mais duradoura seria deixada nos anos 70 pela direção de duas comédias eróticas de grande sucesso: O Marido Virgem e Deixa, Amorzinho… Deixa. Cenas desses últimos filmes dominam a homenagem que seu filho, Adolfo Lachtermacher, lhe presta no documentário O País da Pornochanchada,

Num projeto que vem acalentando há pelo menos 12 anos, Adolfo lança mão do dispositivo da pesquisa. Ele estaria à procura de outro filme que o pai não chegou a lançar, cujo título podia ser Com Minha Viúva, Não ou Com o Sexo na Cabeça, ambos muito típicos da produção da época. Trechos desse filme metalinguístico – onde Jorge Dória interpreta justamente um diretor de cinema em meio a filmagens – ilustram, em tom de sátira, o processo de criação do gênero. A busca pelo filme perdido teria levado Adolfo a revisitar a trajetória da chanchada e da pornochanchada, tendo em conta a sua própria formação de adolescência e juventude em meio à ditadura e aos filmes do pai. Esse talvez seja o documentário mais pessoal entre os que já pretenderam fazer uma revisão desse filão do cinema brasileiro.

Diante de uma ilha de edição, Adolfo repensa (em off) o eterno retorno da chanchada como uma característica do nosso país. Dos exemplares “ingênuos” dos anos 50 ao tsunami de comédias picantes dos 70 e até a chanchada cruel do governo Bolsonaro, ele vê uma linha de continuidade marcada pelo machismo e a objetificação da mulher. Ao mesmo tempo, aponta o humor e a picardia de outros tempos como um refresco que, em retrospectiva, lhe permite espantar a tristeza do período em que realizou o filme.

Os homens correm atrás das mulheres, os espermatozóides correm atrás de um óvulo (em cena antológica de um dos filmes), Adolfo corre atrás de uma visão histórica do fenômeno na nossa cultura audiovisual. Hernani Heffner, o homem que sabe tudo, comparece com seu habitual pensamento articulado e chega a enxergar laivos de feminismo na pornochanchada: em comparação com os arroubos mais antigos de um Rodolfo Valentino, que puxava a mulher pelo braço e a dava por conquistada, os galãs da comédia erótica tinham que implorar “deixa, amorzinho, deixa” para receber os favores de Sandra Barsotti, Rossana Ghessa e outras cobiçadas.

Dercy, Zé Trindade, Flavio Migliaccio, Ney Latorraca, Grande Otelo, Jorge Dória, Perry Salles, Maria Lúcia Dahl e Célia Biar são outros e outras que reaparecem em cenas capazes de nos divertir ao mesmo tempo que nos constrangem. Assim era a pornochanchada. Assim era o país até pouco tempo atrás.

 

Eu, a onça

Diário de uma Onça, disponível na plataforma Globoplay, é um curioso exemplar brasileiro de “mundo animal”. Foi realizado por diretores ligados à BBC, à National Geographic e à ONG Onçafari, dedicada à conservação da biodiversidade. Durante três anos eles seguiram três gerações de uma família de onças pintadas do Pantanal matogrossense. A avó Fera foi a primeira a ser reintroduzida na natureza depois de um tempo em cativeiro. Uma pescoceira eletrônica permitia que fosse monitorada pelo pessoal da Onçafari, que acompanhava sua luta pela sobrevivência, seus hábitos alimentares e sexuais, os cuidados com a prole.

Por sua vez, a filha Ferinha daria à luz Leventina, a oncinha jovem que protagoniza o filme e se vê abandonada pela mãe antes que aprendesse a se virar sozinha. Ela conta a sua história e de sua família pela voz de Alanis Guillen, a Juma do remake da novela Pantanal. A atribuição de uma narração, com prosódia pantaneira, não deixa de romantizar o animal selvagem, mas devo reconhecer que o roteiro de Bea Monteiro e Giuliano Cedroni resiste bem a essa tentação. Assim, o diário fica nos limites de um divertimento agradável, bafejado pelas belas imagens e a montagem esperta de Pedro Bronz.

O filme documenta o trabalho da Onçafari e elabora com graça a trajetória das três onças. A direção é do britânico Joe Stevens e dos brasileiros Fábio Nascimento e Mario Haberfeld.

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