Bonitinha em tempos de pornochanchada

Bonitinha, mas Ordinária ou Otto Lara Resende, de 1981, passa na Mostra Centenário de Nelson Rodrigues, no Canal Brasil, à 0h15 de terça para quarta. A seguir, uma versão ampliada do texto de introdução do filme no horário.      

Por muito tempo Nelson Rodrigues não deu muita bola para o cinema, embora gostasse de faroestes, filmes de gângster e de Charles Chaplin. Mas por volta de 1980, ele estava completamente rendido ao sucesso que vinham fazendo os filmes baseados em suas obras. Ele mesmo queria que Lucélia Santos desempenhasse o papel-título da segunda filmagem da peça Bonitinha, mas Ordinária. Ele achava que a heroína de Escrava Isaura e outras telenovelas poderia encarnar perfeitamente a ambiguidade e a falsa inocência de Maria Cecília.

Lucélia acabou emendando mais duas adaptações de Nelson: Engraçadinha e Álbum de Família. Tornou-se a musa tardia do maior dramaturgo brasileiro.

Nessa segunda transposição de Bonitinha, mas Ordinária, dirigida por Braz Chediak e lançada em 1981, assistimos três vezes ao ato que dá origem à trama: o estupro de Maria Cecília por cinco homens negros. O cinema brasileiro vivia uma época em que tudo devia ser mostrado com ênfase, principalmente quando se tratava de sexo e violência.

O filme foi produzido pela Sincrocine, empresa de Pedro Carlos Rovai. Levou quase 1 milhão e oitocentas mil pessoas aos cinemas. Rovai foi um dos lançadores da comédia erótica que daria origem à pornochanchada. Braz Chediak tinha assinado alguns títulos do gênero, e aqui ele procura combinar o apelo mais comercial da nudez com a carga mórbida do texto de Nelson Rodrigues. O aspecto do voyeurismo, por exemplo, é bastante sublinhado. Não só a câmera atua como voyeur diante dos corpos nus de atrizes como Vera Fischer, Xuxa Lopes e Claudia Ohana, mas também diversas cenas reproduzem a situação de alguém que espreita o ato sexual alheio.

A história gira em torno do dilema moral do escriturário Edgar com um cheque que queima suas mãos. Seu patrão, vivido por Carlos Kroeber, lhe dá o cheque de 5 milhões de cruzeiros para que ele aceite casar-se com sua filha, a tal Maria Cecília, cuja moral precisa ser reparada. Mas Edgar, papel de José Wilker, está apaixonado por Ritinha, personagem de Vera Fischer, uma mulher do subúrbio como ele, que ganha a vida do jeito que pode. Milton Moraes faz o intermediário Peixoto, o canalha perfeito. A propósito dele, Nelson Rodrigues criou uma de suas frases lapidares: “No Brasil, todo mundo é Peixoto!”

Mas a frase que mais ouvimos, verdadeiro mantra que atravessa o filme e a peça original, é atribuída a Otto Lara Resende. Não vamos repeti-la mais uma vez aqui, mas vale a pena acompanhar como ela se transforma de mero comentário numa espécie de divisor de águas moral dentro da história.

Sobre sua única peça de final feliz, Nelson deu uma sinopse de próprio punho. Ele escreveu assim: “Tudo acontece nessa história danada. E todo mundo é, ao mesmo tempo, um pulha e um anjo. O puro é capaz de abjeções inesperadas e totais, e o obsceno, de inocências deslumbrantes”. Ainda é Nelson quem diz: “Bonitinha, mas Ordinária projeta exatamente a nossa duplicidade. Somos aquela pureza e somos aquela miséria. Ora aparecemos varados de luz como um santo de vitral, ora rugimos como um fauno de tapete.”

Nessa peça, Nelson torna explícita sua visão desencantada de uma sociedade regida por relações de submissão, chantagem e abuso de poder. Nela, cada pessoa é posta à prova na elasticidade do seu sentido de moral e na extensão de seus interesses. Ter ou não caráter vira uma questão central, seja para a economia, seja para o amor.

Os anos 1980 trouxeram algumas modernizações para Bonitinha, mas Ordinária. Já na primeira fala do filme, o Doutor Heitor Werneck diz que a virgindade não é mais um requisito de dignidade como nos anos 50. Por isso foi criada uma personagem, interpretada pela venerável Henriette Morineau. Ela é uma pessoa mais velha, ligada a outra época, e como boa matriarca subjuga Heitor e exige o casamento arranjado da neta.

Os palavrões foram atualizados e multiplicados. A festa agora tem cocaína, e a cena da curra de jovens para divertimento dos convidados não nega a influência do Salò de Pier Paolo Pasolini, que tinha sido exibido pouco tempo antes no Brasil.

Por fim, uma curiosidade: Os créditos finais não dizem, mas as cenas da empresa em que Edgar e Peixoto trabalham foram filmadas na agência bancária onde atualmente funciona o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. É curioso ver como aquele espaço, hoje tão identificado com a cultura, era de onde saíam cheques como o que tira o sono de Edgar.

Um comentário sobre “Bonitinha em tempos de pornochanchada

  1. Excelente apresentação para um filme que é, no máximo, mais ou menos (e a peça original já não é das melhores do autor). Curti muito a frase da qual não me lembrava mais: “Ora aparecemos varados de luz como um santo de vitral, ora rugimos como um fauno de tapete”. Santo de vitral e fauno de tapete transformam imediatamente o pensamento-linguagem de Nelson em imagens visuais absolutas e conceitos (ou pré-conceitos/estereótipos) definitvos.

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