É Tudo Verdade: Tesouro Natterer

Na primeira metade do século XIX, o naturalista austríaco Johann Natterer passou 18 anos no Brasil coletando objetos, animais e até vermes intestinais para o Museu Imperial da Áustria. Em sucessivas remessas de navio para a Europa, ele enviou mais de 50.000 itens, entre mamíferos, répteis, anfíbios, peixes, aves, quase 33.000 insetos, uma infinidade de objetos domésticos e pessoais, instrumentos musicais, utensílios e adornos indígenas de 68 etnias. Devidamente mumificados, empalhados e preservados, consta que esta é a maior coleção de itens brasileiros do mundo, hoje abrigada no Museu do Mundo de Viena.

A expedição, patrocinada pela arquiduquesa e futura imperatriz Maria Leopoldina, primeira esposa de D. Pedro I, atendia aos interesses da Áustria no sentido de formar um museu de ponta no contexto europeu. Durante a longa estada em terras brasileiras, Natterer casou-se com uma indígena, com quem teve três filhos, uma das quais foi baronesa na Áustria. Permaneceu por muito mais tempo do que o previsto, sofrendo doenças e esperas longuíssimas. No final, teve parte de seu tesouro destruído durante a Revolta da Cabanagem.

O documentário de Renato Barbieri remonta essa saga com muito capricho estético e dois personagens de destaque. O historiador austríaco Kurt Schmutzer, biógrafo de Johann Natterer, tira férias de sua bandinha folk Lost Compadres e vem ao Brasil para refazer os passos de seu biografado. Com ele à frente, o filme percorre locais-chave da peregrinação de Natterer enquanto descreve a aventura de 200 anos atrás.

O outro personagem importante é o professor e político indígena Hans Kaba Munduruku, da região do Tapajós, em visita ao museu vienense. Além de ver e tocar os objetos de seus ancestrais, ele reclama a devolução do acervo a suas origens. Aqui o filme entreabre uma séria discussão.

Tem sido comum a repatriação de tesouros culturais saqueados por museus europeus a países como a Turquia e outros da África e da Ásia. O tema é complexo porque, em muitos casos, trata-se de colocar em risco a integridade e mesmo a existência de itens até agora bem conservados e seguros nos grandes museus. Repatriar a coleção Natterer para as aldeias indígenas, como reivindica Hans Kaba, seria condená-la a uma rápida deterioração. Trazê-la para um museu brasileiro seria expô-la ao risco que já correram instituições como o Museu Nacional e a Cinemateca Brasileira.

Tesouro Natterer apenas tangencia esse debate complexo. Não há tampouco uma voz crítica que traga a interpretação do saque. Preocupa-se mais com o relato da expedição, com muitos detalhes interessantes sobre o modus operandi daqueles empreendimentos tipicamente coloniais. Natterer usou mão de obra escravizada e sabe-se lá como remunerou os brasileiros por suas compras.

Mesmo que falte uma perspectiva mais crítica quanto à expedição, o documentário mete o dedo na ferida contemporânea da devastação de terras indígenas pelo garimpo ilegal, a monocultura e as queimadas criminosas. Bolsonaro estava no poder quando o filme foi feito.

De resto, Renato Barbieri não recua de seu habitual requinte visual (fotografia de Jacob Solitrenik e Daniel Leite) e sonoro (trilha musical de Márcio Vermelho e Pedro Zopelar). A vistosa captação dos cenários naturais se soma à sofisticada filmagem da coleção – incluindo aquarelas pintadas por Natterer – e a vinhetas de animação bastante arrojadas. Alinhado à magnitude do acervo, o filme é em si um pequeno tesouro.

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