O cordelista e os arquitetos

É Tudo Verdade – São relações que a gente só estabelece mesmo no âmbito de um festival como esse. Fora daqui, não faria o menor sentido. Mas, exibidos na mesma sala em sessões consecutivas, Cuíca de Santo Amaro e Os Irmãos Roberto acabam chamando atenção para as contaminações diversas que afetam a construção de um documentário.

Ambos tratam de personagens razoavelmente célebres, mas que não gozam da repercussão mais ampla de seus pares. O cordelista Jorge Gomes, vulgo Cuíca de Santo Amaro, foi um cronista social da Bahia nas décadas de1940 a 60, um empreendedor de si mesmo que ajudou a derrubar e eleger políticos, viveu da versificação de escândalos e do fruto de pequenas chantagens. Um “canalha modesto”, que, no dizer de Millôr Fernandes, apenas ecoou em escala miúda o comportamento da grande mídia. Já os irmãos Marcelo, Milton e Maurício Roberto foram expoentes um pouco menos conhecidos da arquitetura modernista carioca, responsáveis por prédios inovadores como a sede da ABI, o aeroporto Santos Dumont e os edifícios Marquês de Herval e Julio de Barros Barreto (junto à Universidade Santa Úrsula).

Cada um a sua maneira, os filmes procuram jogar luz sobre a atuação desses artistas, sem muita ênfase na sua vida pessoal. Os Irmãos Roberto, aliás, deixa esse aspecto completamente de fora. Os diretores Ivana Mendes e Tiago Arakilian concentram-se na discussão da obra do escritório MMM Roberto, capaz de tratar edifícios residenciais com requintes artísticos e atenção especial para o contexto urbano em que eles se inseriam. Algo muito diferente da arquitetura pretensamente luxuosa e indiferenciada que hoje prevalece. O que temos, então, é uma espécie de seminário de arquitetos e professores de arquitetura, ilustrado por descrições in loco de algumas dessas obras fundamentais. Uma apresentação, portanto, bastante racional e bem-comportada do assunto, com imagens enquadradas classicamente e alguma dificuldade na hora de se mover mais livremente pelos ambientes. A edição procura construir uma linha retórica sólida e única a partir dos vários depoimentos, realçando os pontos de continuidade e simetria. Ou seja, um doc que se pretende peça “arquitetônica” bem acabada e vistosa, inteligente e bem articulada. Como as construções que enfoca.

Cuíca de Santo Amaro, por sua vez, deixa-se contaminar pela verve baiana do personagem e dos demais “personagens” que falam sobre ele. A intenção dos diretores Joel de Almeida e Josias Pires, no fundo, não é muito diferente: trata-se de arquitetar um perfil tangível do poeta que se autodenominava “O Tal!” – assim mesmo, com ponto de exclamação. Há mesmo a necessidade de inscrevê-lo na história da cultura como sucessor de Gregório de Mattos e precursor do Tropicalismo. A diferença está no material, e isso vai afetar a relação que o espectador estabelece com o filme. Se em Irmãos Roberto, a gente ouve e tende a respeitar o que ouve, em Cuíca de Santo Amaro a gente ouve, duvida, ri e partilha a picardia.

Aparentemente muito distintos, mas com semelhanças subterrâneas, os dois filmes combinam o resgate de personalidades colocadas em segundo plano com denúncias de um estado de coisas (a arquitetura contemporânea, o jornalismo venal) e um grande desejo de mostrar seus personagens na moldura do seu tempo.

Um comentário sobre “O cordelista e os arquitetos

  1. Adorei assistir “Os Irmãos Roberto”, assim como o filme sobre Reidy, pois
    ajudaram a mudar meu olhar sobre a cidade, hoje dou mais importância a suas construções e a relação delas com os bairros e com seus habitantes.
    Achei bom , neste caso, que o formato fosse caretinha.

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