Coutinho

Há apenas três dias eu pude ver pela última vez Eduardo Coutinho. Foi na gravação da faixa comentada do DVD de Cabra Marcado para Morrer, que finalmente virá à luz em abril próximo por obra do Instituto Moreira Salles. Na foto acima, em torno dele estamos eu, Eduardo Escorel, João Moreira Salles, José Carlos Avellar, Bárbara Rangel e Denilson Campos. Coutinho estava do jeito que andava ultimamente: muito frágil fisicamente, vitimado por algumas quedas, andando com certa dificuldade, mas com o pensamento ágil e o humor afiado que sempre o caracterizaram.

Uma coisa, porém, intrigou a todos nós: a insistência em comentar o destino atual dos familiares de Elisabete Teixeira, a protagonista do Cabra. Sobretudo, ele parecia obcecado em falar de uma tragédia que já estava contada num extra do DVD, gravado ano passado quando Coutinho voltou a Elisabete e seus parentes: um dos filhos dela havia assassinado um irmão e depois tinha sido eliminado, talvez como queima de arquivo.

Não sou dos que creem em percepção extrassensorial e quetais, mas como não ver ali uma inquietação premonitória? Coutinho sempre teve um temperamento trágico, que se manifestava no pessimismo constante com relação aos seus projetos. Isso era frequentemente matizado pelo humor e por um ceticismo que vagava entre as esferas política e pessoal.

Pouquíssima gente conhece detalhes de sua vida familiar – e essa opacidade constante pode ter encoberto as raízes da tragédia que hoje abalou o Brasil. Mas essa é uma investigação que fica para depois. A hora é de luto e consternação pela perda de um grande artista e um ser humano caloroso.

Tive a honra e o prazer de conviver com o Coutinho em algumas poucas ocasiões: festivais, encontros, debates, pré-estreias. Escrevi um livro sobre sua obra para o qual, em 2004, durante seis horas, fiz a mais longa entrevista já feita com ele até então. Não foi muito, mas foi o bastante para saber que estava lidando com um homem especial, avesso a sentimentalismos mas no fundo bastante sentimental. De alguma maneira, o interesse do cineasta pela vida dos outros, pelas histórias de amor, fé e trabalho de pessoas comuns, que não representavam nada a não ser a si mesmas, diz do amor dele próprio pelo mundo que hoje o expulsou tão dramaticamente.

A hora é de dor, mas também de regozijo pelo que ele, através de seus filmes, nos ensinou.

10 comentários sobre “Coutinho

  1. Pingback: Amigo publica última foto de Coutinho e diz que ele teve ‘inquietação premonitória’ | Virgula

  2. Muito obrigado por suas generosas palavras num momento tão difícil… por me ajudar a enfrentar este luto.

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