A Mostra Centenário de Nelson Rodrigues do Canal Brasil traz hoje (0h10 de terça para quarta) a segunda adaptação cinematográfica da peça O Beijo no Asfalto. Abaixo, meu texto de apresentação.
Dirigida por Bruno Barreto e produzida por seu irmão Fábio, essa foi uma das sete transposições de obras de Nelson Rodrigues feitas nos tempos áureos da Embrafilme, entre 1978 e 1983. Era um período em que o cinema brasileiro tentava se industrializar com apoio direto do estado. E Nelson Rodrigues era garantia de boa bilheteria.
O Beijo no Asfalto é de 1981. São bem marcantes as diferenças em relação à versão anterior, O Beijo, lançada em 1965 e também exibida na Mostra. O filme agora é colorido, com fotografia de Murilo Salles, e apresenta a trama de modo mais naturalista, puxando para o estilo do filme policial. Quase não há resquícios da linguagem do teatro. Em compensação, o formato está mais próximo das telenovelas. Da televisão vêm os principais nomes do elenco, que inclui Tarcísio Meira, Daniel Filho, Ney Latorraca, Cristiane Torloni e Lídia Brondi. No papel do delegado, está Oswaldo Loureiro, que na primeira montagem da peça, em 1961, interpretou sua vítima, o bancário Arandir.
Daniel Filho, numa atuação soberba, resgata toda a cafajestice do jornalista Amado Pinheiro, personagem que na peça original levava o nome real do jornalista Amado Ribeiro, de Última Hora. Era a forma como Nelson Rodrigues costumava provocar seus colegas, tratando-os como personagens de ficção. Em conluio com um delegado de polícia igualmente inescrupuloso, Amado Pinheiro manipula a opinião pública para condenar o tímido Arandir, que cometeu o pecado de atender ao pedido de um homem recém-atropelado: um beijo na boca.
A história é um clássico sobre a difamação e a aliança espúria entre a polícia e a imprensa sensacionalista. Mas é também um conto trágico sobre paixões reprimidas, principalmente quando atentam contra as leis da fidelidade conjugal ou contra a moral e os bons costumes. Pela extrema concentração, que chega às raias do absurdo, Nelson Rodrigues acaba denunciando o contrário: a hipocrisia e o oportunismo que regem as relações sociais num ambiente repressivo.
O roteiro de Doc Comparato atualiza a história para 1981, quando o Brasil apenas começava a sair da ditadura militar. Havia um clima tímido de liberação no ar, o que é bem representado pela cunhada de Arandir. O papel de Dália (Lídia Brondi) cresce bastante se compararmos com a versão de 1965. Aqui ela é a jovem que dispensa o preconceito em nome da paixão pelo marido da irmã.
A presença da televisão é outra novidade desta versão, associada à figura de Dália e a uma forma de jornalismo que seria mais humana que o jornal escandaloso. Um trecho de telejornal mostra os repórteres procurando interpretações diferentes do caso, como se fosse uma consciência da década de 80 atuando sobre os códigos morais dos anos 60.
As diversas menções à tortura física acrescentam um comentário indireto aos abusos cometidos nas delegacias durante o regime de exceção. A participação de Ney Latorraca no papel de Arandir acrescenta uma sombra de ambiguidade sobre o personagem, enfatizando sua fraqueza e a opção por fugir em vez de enfrentar seus caluniadores.
De resto, a fidelidade ao texto de Nelson é praticamente total, inclusive mantendo os diálogos originais. Nelson Rodrigues Filho, que foi assistente de direção, contou que o pai lhe telefonava todas as noites, querendo saber como andava a produção do filme. O velho estava entusiasmado com o projeto da família Barreto. Quando morreu, em dezembro de 1980, já tinha visto uma montagem das imagens, mas ainda sem o som.
Não sabemos o que Nelson achou da memorável cena final. Com aquele último beijo, que inexistia na peça, o filme explicitava uma paixão que não ousava dizer seu nome durante todo o espetáculo. Afinal, vivíamos um tempo de abertura e os primeiros movimentos de afirmação do movimento gay. Era preciso descriminalizar o beijo.
Excelente apresentação! Eu diria até que vai além… Sendo raras as reflexões sobre essa pérola perdida da nossa cinematografia, é pra se ter em alta conta. Obrigado.
Que bom ler isso, Lavreh. Agradeço muito.
Essas apresentações rendem um livro de tão pertinentes. Já pensou nisso?
Grato pelo elogio e pela sugestão, mas não creio que o material se preste a esse luxo.