O cinema segundo Simião

Faleceu no último dia 27 o cineasta pernambucano Simião Martiniano. Em 1999 tive a oportunidade de entrevistá-lo para o Estadão durante uma mostra dos seus filmes no CCBB-Rio. Foi uma das mais interessantes e divertidas apurações que fiz na minha carreira de jornalista. Vale a pena curtir a sabedoria empírica e o sabor da prosa do “camelô do cinema”.

Foto: Ricardo Fernandes/ DP/ D.A.Press

SIMIÃO MARTINIANO FAZ LEGÍTIMO CINEMA POPULAR

Para o cineasta nordestino Simião Martiniano, a crise e a retomada do cinema brasileiro nos anos 90 são uma imagem enevoada no horizonte infinito, e ainda por cima fora de foco. Ele realizou cinco filmes desde 1989 e tem o sexto engatilhado. Não são filmes como quaisquer outros. Na verdade, são vídeos de longa-metragem, recheados de clichês de westerns, filmes de ação, romances e comédias caipiras. Simião escreve, dirige, comanda todas as etapas de produção e às vezes ainda atua à frente da única câmera VHS. Foi revelado ao resto do Brasil pelo curta Simião Martiniano, o Camelô do Cinema, dos pernambucanos Clara Angélica e Hilton Lacerda, vencedor do prêmio da crítica no último Rio Cine Festival.

Desde então, Simião virou uma modesta estrela, sem nada perder do jeito humilde, mas seguro, de artista legitimamente popular. Foi ao Jô Soares Onze e Meia, ao Domingão do Faustão e deu inúmeras entrevistas contando sua trajetória que começou na infância pobre em Alagoas. Órfão desde os 10 anos de idade, foi adotado por um capitão do mato e emigrou aos 18 para Pernambuco, onde trabalharia 25 anos na construção civil. Da pequena biografia mostrada no curta, ele só discorda do menino que faz o seu papel. “Eu era galeguinho, e não moreno assim”, corrige.

Simião estudou “até o quarto livro”. Arrepende-se de ter preferido paquerar a professora, filha de um senhor de engenho. Apaixonou-se mais ainda pelo cinema e, perseverante, conseguiu pequenos papéis em três filmes pernambucanos. Fez um cursinho de iniciação ao cinema com Pedro Teófilo e, em 1974, rodou o longa Traição no Sertão com a ajuda do bancário Antonio Ventura, que possuía uma câmera Super 8 e se tornaria seu colaborador em vários trabalhos. “Este filme e mais A Mulher e o Mandacaru contam a história da minha vida”, entrega. Ele chegou a dirigir uma programação cultural no município de Vitória de Santo Antão e iniciar a gravação de uma radionovela dentro da própria casa, com base no seu folheto de cordel Minha Vida é um Romance.

Sua vida atual é de uma simplicidade comovente. Ele pega o metrô diariamente de sua casa, no município de Jaboatão, para o centro de Recife, onde tem uma barraca de venda de velhos discos de vinil. “Ainda bem que já não pago o metrô”, comemora aos 65 anos de idade. Vende discos de Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Forró do Abdias, Marinês e Orquestra, trilhas sonoras e fitas com os seus filmes. “Disco de pagode está lá por dois reais e ninguém quer”, conta. Em época de filmagem, ele se abala para “o campo” em companhia dos atores e da equipe. É o Grupo de Cinema Clenio Wanderley, batizado em homenagem ao criador e ator principal da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, em Pernambuco.

Simião Martiniano já foi chamado de “Ed Wood brasileiro” pela precariedade técnica de filmes como O Herói Trancado, O Vagabundo Faixa Preta e A Rede Maldita, que ele luta para colocar nas locadoras de Pernambuco. Concluiu seu último filme, a comédia mazzaroppiana A Moça e o Rapaz Valente, o primeiro em Super VHS, com míseros 5 mil reais e algum apoio logístico. Os atores, em vez de receber cachês, contribuem com uns trocados para as despesas de produção. A recente notoriedade o animou a orçar seu próximo trabalho, o thriller A Valise foi Trocada, em 20 mil reais, com filmagens em Betacam, a fita profissional das televisões.

No mês passado, Simião foi ao Rio de Janeiro pela primeira vez, convidado pelo Centro Cultural Banco do Brasil para a mostra Videoautor, onde ele ombreou com Roberto Berliner, Mauro Mendonça Filho, Eduardo Coutinho e outros. Na ocasião, fez palestra e relatou a O Estado detalhes do seu método intuitivo e cristalino de contar histórias bem ao gosto do seu público. Apesar do linguajar estropiado, Simião demonstra conhecimento sólido das regras narrativas do cinema e um talento inesgotável para retirar do nada uma trama curiosa, um conflito clássico, uma piada eficaz. É um artista naif, mas não primitivo. Veja nos tópicos a seguir, passo a passo, como é o cinema segundo Simião Martiniano da Silva.

Roteiro

“Primeiramente eu analiso como vou começar a história. É a mesma coisa de uma poesia. Se você fizer o primeiro verso, vai fazer o segundo e assim por diante, aos poucos. Um objeto que aparece ou desaparece de repente já é o começo de uma história. Quem colocou ele ali, quem retirou? Já tenho um mistério. Aí a criatividade é minha até fechar o ciclo e chegar ao objetivo final. Vou passando tudo para o papel. É como se fosse um mapa. Toda história tem um mapa. Em A Rede Maldita, por exemplo, primeiro criei a lenda das botijas enterradas com moedas de ouro, que mudam de lugar a cada cem anos carregadas por almas ou bichos. Depois imaginei o homem que tinha devoção com as almas e ganhava uma botija. Como é que eu vou criar o conflito para ele? Botei o coronel cobrando a dívida e ele vai pagar com as moedas de ouro. O coronel roubou a botija dele. Pronto, daí o filme vai em frente.”

Gramática narrativa

“Se eu vou atravessar essa rua e entrar em algum lugar, tenho que mostrar primeiro esse lugar aonde eu vou chegar. Toda filmagem deve ser assim. Se um cara vai entrar aqui onde nós estamos, eu tenho primeiro que filmar esse recinto em plano geral e depois cortar para ele entrando. Do contrário, fica um buraco e o espectador fica perdido. ‘Será que ele entrou dentro de um poço, será que o lugar vai explodir?’, o espectador pode ficar imaginando coisas horríveis. Estou sempre pensando no público. A gente não faz o trabalho para a gente, mas no modo do espectador. O povo é que é o júri do nosso trabalho.”

Orçamento da produção

“Fiz meu primeiro filme com 2 mil reais conseguidos do vereador, do prefeito, dos atores e de mim mesmo. Agora estou gastando coisa de 5 mil. Tenho mais apoio, mais empreendimento. A maior parte do orçamento vai para alimentação, transporte, aluguel de cavalos e o hotel das meninas, porque elas não podem ficar dormindo no salão com os homens.”

Planejamento das filmagens

“Eu separo os atores para filmar num mesmo dia, num mesmo local. As cenas e as tomadas são todas numeradas por causa da montagem. E tem mais o espaço de uma para a outra, porque elas vão ser cortadas no meio para dividir. É o lugar da plaquete (claquete). Só uso plaquete nas cenas e seqüências. O que é seqüência? Se eu estou filmando com você aqui e vou para aquela sala, é outra seqüência porque o cenário mudou. Dentro dessa seqüência pode ter cenas de comédia, de amor, de violência etc. Se um ator amanhece doente, não aparece, a gente filma outras cenas com os atores que estão ali.”

Teste de atores

“Muita gente chega pedindo para trabalhar comigo. Eu faço logo um teste. Quando é homem, peço a ele que faça a cena, ali no salão, como se estivesse na estrada e o carro desse um defeito. Ele vai ter que descer do carro, olhar o motor, os pneus, tentar consertar, tudo como na vida real. Só pelo gesto que ele faz, na maneira como imita abrir a porta do carro, se envergar no capô, acochar (apertar) um parafuso, eu já vou observando se é inteligente e tem criatividade. Quando é uma moça, eu mando ela contracenar com um cara que vai bater nela. Quero ouvir seus gritos e depois ela vai chegar aqui chorando e contar para mim. Quando a moça tem espírito artístico, chora de verdade. A gente até aplaude.”

Preparação dos atores

“Ensaio três, quatro meses com os atores antes de filmar. A gente ensaia os movimentos no salão, imaginando como vai ser no cenário original. Os atores já vão prontos, mas a gente às vezes faz diferente quando chega no cenário. Primeiro eu faço a cena para os atores verem. Vou corrigindo as mímicas, a expressão corporal, tudo isso. Vamos supor, numa cena de riso o ator não pode ficar como uma estátua sorrindo. Tem que rir com o rosto e o corpo todo, até os braços têm que ajudar. Para cumprimentar, não pode ficar todo duro, tem que fazer a mímica também. Quando o ator faz melhor do que ensinei, eu até admiro.”

Uso da câmera

“Hoje eles modificaram os nomes das tomadas de filmagem. Na época em que eu estudei, tinha o plano infinito (a visão que não se divisa mais nada), o meio-infinito (metade da distância do infinito), o contraplano fechado (já dá para divisar se uma pessoa é homem ou mulher, preto ou branco), o plano geral (uma pessoa dos pés à cabeça). Agora, como é que eu vou cortar essa pessoa em detalhes? Do joelho para cima, da cintura para cima, dos ombros para cima, a cabeça e o grande plano, que são só os olhos, a boca ou as orelhas. Se um ator entra em luta ou cai num acidente, dou o plano geral e depois o detalhe para mostrar o ferimento. Ou numa conversa, boto o detalhe quando o ator usa um sotaque: pisca os olhos ligeiro, faz uma careta, estala os dedos. Isso é de grande importância porque mostra como ele é naturalmente na vida. Eu corto e mando ele repetir o sotaque para filmar o detalhe.”

Filmagem repetida

“Tem que filmar duas ou até quatro vezes para garantir. Eu fico dirigindo pelo monitor. Mesmo quando o cinegrafista garante que a tomada está boa, eu mando repetir porque pode ter um erro lá na máquina. E se eu chegar na montagem e ‘cadê a cena?’, ‘ah, apagou’. E agora?”

O Som

“Gravo os diálogos com o microfone da câmera, um microfone externo ou às vezes com os dois para reforçar. Som de tiro ou cavalo eu pego em discos de filme de caubói. Os tiroteios que eu filmo no campo têm o som do disco do Django. Se eu der um tiro aqui perto da máquina, o som sai fofo, não presta. Mas alguma fumacinha tem que sair da boca da arma, porque se não fica uma coisa fora de estética. Se for de noite, tem que sair a claridade da pólvora. A gente compra as balas, tira o chumbo com um alicate e soca papel higiênico bem apertado.”

Efeitos especiais

“Em A Moça e o Rapaz Valente, no papel de um fazendeiro, eu mato uma velha no sofá dentro de casa. Corto para a filha dela sonhando no quarto. Daí para a velha pendurada nas nuvens. Para fazer isso, mandei o cinegrafista deitar no chão e filmar a velha do joelho para cima com a máquina de cabeça para baixo. Depois filmei uma torre de nuvens no céu azul. No estúdio, a velha ficou pendurada, vestida com uma mortalha branca, e eu botei as nuvens do joelho para baixo. Ainda botei ela desaparecendo dentro das nuvens. Quando ficaram só as nuvens, cortei para a moça acordando. A gente nunca aprende o que é o cinema. Quanto mais a gente trabalha, mais falta coisa para estudar. Eu faço todos os efeitos. Para o sangue, uso xarope de groselha com pó de tinta preta. Boto na bisnaga e sacolejo para ficar bem grosso. Testei o morango, a uva, o mercúrio cromo e umas balinhas encarnadas que comprei em São Paulo, mas a cor não ficava boa ou botava uma nódoa desgraçada na roupa. Só a groselha foi eleita.”

Cenas eróticas

“Qualquer atriz faz o papel, pode ser até mocinha de menor. Mas se eu fosse filmar uma cena explícita – o que nunca fiz – eu filmava a moça na cama, o rapaz arqueando por cima dela, o beijo, a ansiedade deles. Mas da cintura para baixo, cortava para uma mulher de programa, que já estava preparada. Aí era o ator e ela. Depois ia cortando para a ansiedade da moça, até o fim da história. Na montagem, vai parecer que quem fez o serviço totalmente foi a moça. Numa cena de cinema, a mulher não precisa ser uma rainha ou uma modelo. Se ela tiver um mocotó bem feito e eu filmar as pernas dela subindo uma escada, já mostrei tudo o que é a mulher. O espectador fica com água na boca: ‘mas que mulher bonita!’. E ela pode ser feia que só a fome, pode até ser uma pantera. Da mulher a gente pega só as partes mais desejadas. O desejo do público vê o resto.”

Edição

“Fica um montador de cada lado e eu no meio dirigindo, como na filmagem. Às vezes o montador diz ‘essa cena aqui está não-sei-o-quê’ e eu digo ‘meu amigo, vai por mim, quem sabe da história sou eu. Quando eu mandar você cortar, você corta. Onde eu mandar você emendar, você emenda’. Até o tipo de corte, fusão, tudo é feito a meu gosto. Fusão (o dissolvimento de uma cena na próxima), por exemplo, precisa quando vou mostrar que o tempo passou. Para mostrar que passou de um dia para o outro, ou passou um ano, eu preciso de uma fusão ou pelo menos de um quebra-cena, que pode ser até um vaso de flor. Tudo para não ficar buraco no meio. Em O Herói Trancado, o montador errou quando matava (congelava) a imagem para mudar de cena. Eu não estava com ele, nunca faria aquilo. Mas isso só tem importância para a gente, que tem mais experiência. Para o comércio está bom, porque o público não entende o que é o corte de cinema.”

Música

“Se eu botar música de outro, ele vai cobrar direitos autorais para compensar os discos que não vendeu. Então colocamos nossas musiquinhas cafonas, feitas por nós mesmos. No meu último filme, botei a música de um japonês porque ele nunca vai cobrar. Se cobrar, eu peço ‘oh, japonês, pelo amor de Deus…’”

Lançamento

“Quando o filme fica pronto, a gente apresenta primeiro para os atores e a equipe num telão com uma festinha. Depois, para a imprensa e para quem patrocinou ou ajudou. Chama-se apresentação oficial. Em seguida, fazemos uma sessão para os locatários (donos de locadoras). E vamos tentar vender o filme.”

Comercialização

“Vendo cada fita por 40 reais. Quando quero vender as fitas nas locadoras, mando duas atrizes bonitas. Se eu mesmo for, não vendo nada. Uma vez um dono de locadora disse na minha cara ‘filme de caubói feito por um pé-rapado como esse não pode prestar’. O povo não quer dar asas para ninguém voar. Os barzinhos que têm televisão também compram muito. O dono chega e diz ‘enrole aí que eu quero levar’. Espero vender A Moça e o Rapaz Valente para a televisão. Acho difícil eles não quererem. Se não quiserem, vou vender para o exterior. Santo de casa não obra milagre.”  

Simião espectador

“Eu ia muito ao cinema quando não fazia cinema. Agora virei o cinema só para mim mesmo. Vejo bons filmes na TV ou quando sou convidado para festivais. Filme bom é aquele que não deixa o espectador ficar bocejando, arranhando a garganta. Se tem violência, bota agora um pouco de drama, um temperinho de comédia, vai misturando que o público vai agüentando. Quanto filme estrangeiro eu vejo na TV com uma cena escura, depois alguém que grita, depois outra cena escura. Aquilo vai cansando… Vejo também novela, que não é só para mulher. Não pela história, mas para observar o estilo e os erros dos profissionais. Não sou só eu que faço os defeitos. Numa novela, vi um morto batendo pestana e a Globo mostrando o detalhe. Em outra, vi um funeral em que o cinegrafista descia na cova para mostrar a pá de terra caindo em cima do morto. Isso tem lógica?”

Relações com o poder

“Tem três coisas que a gente não pode atingir quando faz um filme: a religião, as forças armadas e os políticos. Se eu fizer um filme mostrando o sofrimento dos pequenos, eu vou perder, não consigo nem comercializar e o governo brasileiro ainda pode impedir a exibição lá fora. Agora, se você é um cineasta que não bole com essas coisas, não ofende a ninguém através da cultura, aí as autoridades não vão lhe combater e você pode ter prosseguimento.”

Fama e apoio

“Saio em jornal ou televisão quase toda semana em Pernambuco. As pessoas chegam na feira onde eu vendo meus discos velhos e apontam discretamente para mim: ‘olha lá o cineasta’. Ganhei um diploma da Câmara dos Deputados como um dos melhores cineastas pernambucanos. A Prefeitura do Recife já me deu plaqueta, mas ninguém me deu uma salinha para eu receber a imprensa e os políticos. Eu era para ter um escritório dado pela prefeitura!”

Veja um trecho do filme A Valise Foi Trocada:

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