Exibições gratuitas: Plataforma Looke, 15/04 às 21h00 e 16/04 às 15h00
Em suas apresentações gravadas para as sessões do festival, Ricardo Calil e Armando Antenore definiram Os Arrependidos como um filme “incômodo”. O adjetivo se referia a um conjunto de sensações que aquele episódio da ditadura desperta em todos que não a apoiaram. Um incômodo que se renova hoje diante de certos personagens remanescentes.
Em 1970, no auge da repressão à luta armada, cinco ex-guerrilheiros da VPR, ALN e MR-8 se pronunciaram diante das câmeras e dos microfones oficiais da Agência Nacional, dizendo-se arrependidos e renegando sua militância de esquerda. Chamavam-se de “terroristas”, conforme eram batizados pelos militares. Conclamavam os jovens brasileiros a se pautarem pelas normas burguesas e renunciarem às ideias “comunistas”. A repercussão na mídia da época estimulou o governo a adotar o “arrependimento” como política de estado. Assim, cerca de 40 ativistas foram levados também a fazerem autocrítica pública em troca de liberdade condicional e ajuda fora da prisão.
Inspirados em livro de Alessandra Gasparotto, O Terror Renegado, Calil e Antenore foram consultar a consciência de cinco “arrependidos” 50 anos depois. Outros dez recusaram o convite a participar do filme por não quererem voltar a memórias dolorosas. O documentário aborda, ainda, o caso de dois já falecidos: Massafumi Yoshinaga (foto acima), que se entregou numa negociação com os militares e mais tarde entrou em depressão, terminando por se suicidar; e Manoel Henrique Ferreira, que conseguiu denunciar a farsa através de uma carta contrabandeada em fragmentos da prisão.
O incômodo não vem das circunstâncias em que aqueles jovens, amedrontados e torturados, teriam denunciado companheiros e cedido à oferta de misericórdia. O incômodo vem da aparente convicção com que alguns se manifestavam nas entrevistas e depoimentos de então. Marcos Vinicio Fernandes e Rômulo Romero Fontes foram muito além do que seria uma autocrítica sob coação. Um como outro não só reafirmam hoje seu arrependimento, como seguiram carreira em veículos de comunicação da direita. Em plena retomada atual da extrema-direita no Brasil, Rômulo minimiza as torturas sofridas e não hesita em elogiar o caráter do “estadista” Garrastazu Médici. O incômodo, então, dá lugar à perplexidade.
Outros, como Celso Lungaretti e Gustavo Guimarães Barbosa, incluídos na leva dos “arrependimentos forçados”, apresentam os matizes de uma decisão complexa, muito embora também desdenhem da militância revolucionária daquela época. São falas marcadas por um misto de constrangimento e evasivas, mas ainda assim elogiáveis por se permitirem ser ouvidas.
Não cabe exatamente julgar a atitude original dos arrependidos. Nos anos 1970, a esquerda logicamente os tomou como traidores. O efeito de suas palavras foi devastador para os que ainda sofriam nas mãos da polícia política ou tentavam escapar dela. Fico pensando se Calil e Antenore deveriam ter buscado as impressões desse lado, mas também compreendo a opção de se restringir aos protagonistas.
De alguma maneira, a visão da esquerda está contemplada no forte depoimento da jornalista Graça Lago, viúva de Manoel Henrique Ferreira, sobre a denúncia da farsa oficial e a permanência da tortura nos presídios comuns da atualidade. É o contraste mais vibrante com as melosas propagandas oficiais que a montadora Jordana Berg semeou ao longo do filme. Que tudo era uma grande mentira, isso já sabíamos. A maior surpresa é constatar que alguns não saíram mais das garras da mentira.
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