Vida de bicho

Uma vaca e uma porca protagonizam, respectivamente, Cow, disponível na plataforma Mubi, e Gunda, inédito no Brasil. Dois documentários de observação radical que tentam penetrar na intimidade dos animais.

O leite de cada dia

Ela se chama Luma, e no seu lombo está gravada a identificação II29. Na fazenda onde vive no Reino Unido, junto a centenas de companheiras, ela é conhecida como mal-humorada. Talvez um pouco deprimida depois de ver seus filhotes serem separados da mãe logo depois de nascer. Numa cena, Luma parece contestar até contra a separação do bezerro recém-nascido de outra vaca.

O primeiro documentário de Andrea Arnold (do ótimo Fish Tank e cujo primeiro curta se chamava Milk) é o resultado de quatro anos acompanhando o dia-a-dia de Luma e de uma de suas seis bezerrinhas, a de número 201699. Com a câmera de Magda Kowalczyk sempre muito próxima do corpo e da cara de suas “bovinagens”, testemunhamos dois partos, exames de ultrassonografia, o cruzamento com um touro, uma série de procedimentos veterinários, pastagens e a rotina incontornável das vacas leiteiras: a ordenha diária ao som de música que pode lembrar as valsas da hora da medicação em Um Estranho no Ninho.

A vida de uma vaca leiteira, tangida para lá e para cá, é uma experiência de submissão permanente. Daí as aproximações possíveis com o destino das mulheres em contextos tradicionais e autoritários. Cow pode levantar, ainda, associações com os temas de maternidade, exploração e descarte animal. Mas é relativamente frustrante no que a diretora apresenta como motivo principal, qual seja o de perscrutar a subjetividade do bicho e estabelecer o seu ponto de vista. Como, afinal, interpretar seus mugidos e olhares? A sequência de Luma contemplando a melancolia bovina do crepúsculo é, sem dúvida, bonita, mas estaremos sempre projetando sentimentos nossos.

Em boa parte de seus 94 minutos, Cow sugere uma ruminação cíclica em busca do inapreensível. Quando Luma envelhece e adoece, arrastando seu úbere pesado, pensamos naturalmente na sorte desses seres que servem e morrem para nos manter vivos. Andrea Arnold, contudo, desce o pano com uma brusquidão acachapante que é a própria natureza das coisas.

Por não almejar uma visão subjetiva de sua protagonista, em vez disso assumindo um aguçado olhar externo, Gunda me pareceu mais consequente e penetrante.

A porca bem de perto

Não acredito que ninguém vá deixar de comer porco, galinha ou carne de vaca depois de ver Gunda. Mas foi com essa intenção que os veganos Viktor Kossakovsky (diretor, fotógrafo, montador) e Joaquin Phoenix (produtor executivo) realizaram esse singular documentário de observação. Gunda é uma porca volumosa que acaba de dar à luz mais de 12 filhotes numa fazenda da Noruega. Kossakovsky registra os primeiros e confusos movimentos dos porquinhos, a disputa pelas tetas da mãe, as brincadeiras emboladas, a busca por alimento.

Com uma câmera discretíssima e algumas tomadas de drone, ele circunda os animais em movimentos lentíssimos, sem causar qualquer alteração no ambiente. No interior da casinha de Gunda, as lentes foram destacadas da câmera, que permaneceu do lado de fora. Nada se ouve além dos ruídos dos bichos, do farfalhar da palha e dos pássaros e insetos ao redor. Nenhuma música, nenhuma fala, nenhum comentário. Nenhuma cor além do preto e branco.

Kossakovsky visa nos familiarizar com Gunda e sua prole, que vai crescendo entre uma sequência e outra até atingirmos o clímax do filme, um dos finais mais tristes da história do cinema. Enquanto a indústria alimentícia cumpre sua rotina – sem que vejamos um único ser humano, mas apenas o seu indício através de um veículo de transporte –, Gunda exprime um desamparo comparável ao de qualquer mãe que perde seus filhos. A cena me fez lembrar a lei recentemente baixada na Nova Zelândia, que reconhece os animais como seres sencientes, ou seja, capazes de sentir emoções positivas e negativas.

Embora o drama se desenrole entre os porcos, Gunda também abre espaço para outros animais destinados ao consumo, filmados na Espanha e no Reino Unido. Galos extremamente cautelosos escapam de uma gaiola, tendo seus movimentos diligentemente observados pela câmera. Uma galinha perneta clama por nossa piedade. Em outro local, vacas de diversas raças encaram as lentes como a nos interrogar.

Este filme é um pequeno elogio da filmagem paciente, cuidadosa e tecnicamente competente. Kossakovsky incorpora mais um universo raro a sua filmografia, mas mantém-se fiel à opção de explorar seus temas com certa radicalidade formal. Em Tishe!, ele acompanhou obras numa rua do ponto de vista de sua janela durante um ano. ¡Vivan las Antípodas!, o levou a quatro locais antípodas no mundo. Em Aquarela, filmou uma sinfonia de água, gelo e catástrofes. Gunda o traz à pura intimidade dos bichos para nos fazer vê-los bem de perto.

Deixe um comentário