O diretor chileno Sebastián Lelio parece gostar de personagens femininas que não se revelam completamente para o espectador. A protagonista de Glória, vivida por Paulina Garcia, era tão interiorizada que chegava ao limite da incomunicabilidade. UMA MULHER FANTÁSTICA não é muito diferente. Temos agora uma personagem trans, Marina Vidal, que reage um tanto enigmaticamente à morte súbita do seu companheiro Orlando, um homem quase 30 anos mais velho do que ela.
Marina precisa enfrentar a rejeição da primeira família de Orlando, a homofobia dos amigos dele, as suspeitas policiais, a desconfiança e o estranhamento que provoca nos círculos mais formais da sociedade. Nunca, porém, somos levados aos clichês habituais desse tipo de drama. De um lado, porque Lelio resfria sua narrativa o quanto pode, colocando o espectador num estranho campo de proximidade e ao mesmo tempo de distanciamento. De outro, porque a atriz e cantora lírica trans Daniela Vega confere uma imensa delicadeza e uma palpável personalidade a Marina, de tal forma que não a vemos como uma ferramenta de melodrama, mas como um ser dotado de lacunas e opacidade.
Essa incompletude de Marina é trabalhada em vários níveis. Há a relativa serenidade com que ela encara as reações das pessoas à sua firme convicção sobre o amor do casal. Uma firmeza mantida quase sempre em fogo brando, com poucos momentos de explosão. Por vezes, a serenidade chega a soar como apatia, adensando o enigma em torno da sua forma de estar no mundo. Há também o caráter elusivo do sexo, pois a genitália é sempre ocultada de maneira ostensiva e provocante (como na foto acima). Note-se ainda as visões que ela tem do companheiro morto, indicativo de uma espécie de consciência superior a vigiá-la ou guiá-la em momentos cruciais da recente viuvez.
“Fantástica” é um termo que amplia o grau de ambiguidade da personagem, muito embora toda a ambientação seja pautada pelo realismo. Marina é seguidamente associada às vistas da cidade de Santiago, signo de concretude e inserção social. Na mise-en-scène elegante de Lelio destacam-se o papel dos espelhos, a potência dos closes frontais de Daniela e o desenho sonoro que combina acordes líricos, música atmosférica quase subliminar e canções ilustrativas, como “You make me feel like a natural woman”.
O que mais me agradou em UMA MULHER FANTÁSTICA, além do prazer de ver Daniela em ação, foi o frescor nada panfletário de sua defesa do amor na diversidade sexual. Nesse sentido, e apesar do contexto e da situação muito diferentes, sinto aí uma temperatura semelhante à de “Corpo Elétrico”.
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Carlinhos, não faltou algo naquele armário? Criou-se tanta expectativa pela tal chave 181 que eu esperava no mínimo encontrar as passagens para as cataratas do Iguaçu. Lindo filme, seu texto abarca tudo. Tridimensional. Vale a pena conferir o filme.
Pois é, Toni. É o que todos esperávamos. Mais uma incompletude na vida da moça…