Herzog com Gorbachev e Bruce Chatwin

ENCONTRANDO GORBACHEV e NÔMADE: NOS PASSOS DE BRUCE CHATWIN na mostra Herzog Além das Margens

“Eu te amo, Gorbachev”

“Eu sou alemão. O primeiro alemão que o senhor encontrou queria matá-lo”, assim Werner Herzog começa sua conversa com Mikhail Gorbachev (1931-2022), referindo-se à II Guerra. Ao que o russo responde: “Não. Os primeiros foram uns vizinhos na infância que faziam ótimos doces”. Num de seus últimos encontros, Herzog lhe levará um presente alusivo àquela memória. Em outro momento, o cineasta lhe agradece: “Nós o amamos. Eu o amo particularmente por ter possibilitado a reunificação da Alemanha”.

Gentilezas à parte, Encontrando Gorbachev (Meeting Gorbachev), mais que uma entrevista, é uma conversa de alto nível sobre política internacional. Herzog narra a história de Gorbachev com base nas memórias dele: filho de pai camponês e mãe analfabeta na remota Stavropol, onde iniciou a carreira; sua ascensão ainda jovem entre a velha guarda do Politburo. Herzog faz ironia montando em sucessão as cerimônias fúnebres dos três líderes que o antecederam (Brejnev, Andropov e o enfermo Chernenko).

Gorbachev relembra os esforços para reduzir armas nucleares e terminar a Guerra Fria – sua conexão com Reagan, Thatcher e Kohl –, critica Yeltsin e lamenta o golpe que o tirou do poder. “Eu devia ter mandado o Yeltsin para algum lugar, mas não era o meu feitio”. Diz que não queria a dissolução da URSS, mas apenas “mais democracia e mais socialismo”. Mas Yeltsin pegou carona no golpe de 1991, que, para Gorbachev, “acendeu uma fogueira que destruiu tudo”.

O filme, produzido para o History Channel, faz a crônica da queda de muros e cercas, fala da resistência de alemães à ideia da reunificação. Com frequência, Herzog traz a conversa para o tema da Alemanha. Para ele, Gorbachev era uma “figura trágica”, um grande estadista que não conseguiu seu intento, um homem solitário que nunca se recuperou da perda da mulher Raíssa e ainda era chamado de traidor por muita gente na Rússia. Mereceria em sua lápide o mesmo epitáfio que viu na de um amigo: “Nós tentamos”.



Almas gêmeas e errantes

Eis mais um filme para provar que os verdadeiros personagens herzoguianos são aqueles que se parecem com Werner Herzog. O inglês Bruce Chatwin (1940-1989) foi um escritor e aventureiro enamorado da pré-história, da vida nômade e das relações entre misticismo e culturas. Herzog esteve próximo dele nos seus últimos anos de vida e levou ao cinema seu romance O Vice-rei de Uidá em Cobra Verde. A identificação entre os dois era percebida reciprocamente – e esse documentário é uma explanação sobre isso.

Longe de ser uma biografia de Chatwin, Nômade: Nos Passos de Bruce Chatwin (Nomad: In the Footsteps of Bruce Chatwin) é um filme-ensaio sobre alguns temas caros ao escritor e ao cineasta, como a paleontologia, o nomadismo, as paisagens eivadas de misticismo e a cultura aborígene. Herzog permite-se também discorrer sobre sua relação pessoal com Chatwin, cuja mochila ele herdou e incorporou como talismã cenográfico ao filme No Coração da Montanha. A amizade dos dois levou a que Chatwin, já abatido pela Aids, pedisse a Herzog que o matasse.

Foram almas gêmeas, sem dúvida, o que Herzog sublinha com esse filme em que se volta muito para si mesmo. Vejam como ele usa a entrevista com Nicholas Shakespeare, biógrafo de Chatwin, para detalhar histórias que tornam o entrevistado um mero ouvinte. Podemos achar que Herzog extrapola sua função de documentarista do outro para falar de si, mas o faz com um afeto sincero e uma propriedade que ninguém pode negar.

>> Encontrando Gorbachev passa às 14h e Nômade: Nos Passos de Bruce Chatwin às 16h de sábado, 16/12.

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