Recupero aqui um texto que publiquei sobre Vincere, de Marco Bellocchio, durante o Festival do Rio de 2009:
Detendo-se sobre um episódio pouco conhecido da era Mussolini – a rejeição do Duce a uma amante com quem teve um filho, e a persistente cruzada da mulher para obter o reconhecimento –, Marco Bellocchio em Vincere cobre três temas que são recorrentes em sua carreira: o sexo, a loucura e a história italiana.
A imagem que melhor sintetiza a conjunção dos três temas é a do jovem Mussolini (Filippo Timi) na cama com a bela Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno). O corpo teso, o olhar esgazeado, a cabeça erguida como num transe diabólico, tudo indica uma possessão e ao mesmo tempo uma ausência, uma alienação para além daquele quarto. É simplesmente assustador, sobretudo quando se pensa na atração sexual que o Duce exercia sobre as mulheres italianas.
Mais tarde, quando a obsessão em dizer-se mulher de Mussolini provoca a prisão de Ida num manicômio, Bellocchio dá vazão a seu elogio da psicanálise como modelo de representação e caminho de salvação. A ideia se consolida na figura de um psiquiatra amoroso que tenta mostrar a Ida o caminho da sobrevivência. O fantasma da insanidade, porém, continua a rondar até mesmo o filho bastardo inglório. Mussolini pai é o único louco que não é internado, prosseguindo com seu projeto à frente do país.
É inevitável o paralelo com Silvio Berlusconi. Paralelo não somente na aparência física, mas também no comportamento clownesco, no priapismo e no culto que essas figuras despertam na massa italiana. Vincere não deixa de ser um filme sobre o presente.
Por fim, cabe destacar duas manifestações artísticas que formam um subtexto do filme: o cinema e a ópera. Várias cenas se passam no interior de cinemas, e é pelos cinejornais que Ida acompanha o amado durante a guerra e todo o período da separação. Os filmes funcionam como substitutivos da realidade e comentários à trama central. Bellocchio não teme o pathos exacerbado, como quando mostra Ida comovida com o reflexo de sua vida nas cenas de O Garoto, de Chaplin.
Pathos, por sinal, é o que não falta a Vincere. Em seu filme mais operístico, Bellocchio apela a sentimentos profundos da alma italiana, fundidos com elementos de tragédia grega. Ida Dalser não chega a ser uma Medéia, mas carrega as cores trágicas das grandes amantes rejeitadas e mães obstinadas.
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Carlos Alberto, gostei do seu comentário sobre o filme, mas discordo no seguinte ponto:
quando diz que Bellochio dá vazão ao elogio à psicanálise como salvação e sobrevivência, materializando isso no papel do ”psicanalista amoroso” não consigo estabelecer quais conexões você fez. Primeiro que ele não era psicanalista e sim psiquiatra. E não consegui observar também que Bellochio considerou a psiquiatria como um ”caminho da salvação”. Quais momentos do filme te levaram a essa análise?
Abs,
Stelle
Você é um dos poucos críticos lúcidos, coerentes, precisos, que escrevem sobre cinema. Parabéns.
Caramba, Setaro, assim você me deixa “de salto alto”. Acho que não vou mais dar bola pra ninguém aqui nas redondezas. Obrigado, de qualquer forma. A admiração, saiba, é recíproca.