Vítima, heróis, caras de pau e uma mochileira

Na Bíblia, o profeta Jó tem sua paciência posta à prova por Deus, que lhe tira a mulher, os filhos e a casa. Leviatã é um mitológico monstro marinho, parido nas profundezas. LEVIATÃ, o filme, parte desses dois personagens para fazer uma devassa na condição do homem comum diante das forças que o estado sso atual pode mobilizar contra ele. Essa crítica ao monstro estatal vem sendo alçada ao firmamento dos prêmios internacionais, mas não me pareceu tão reveladora assim. Que a corrupção e a vodka consomem a dignidade dos russos, isso já sabíamos pelo menos desde Boris Yeltsin. Que os retratos de ex-presidentes merecem servir de tiro ao alvo, não precisaríamos ir até a Rússia para saber. Mais que uma denúncia original, o filme é um estudo de vitimização do cidadão Kolya, subtraído e traído por quase todos os que estão à sua volta. A começar pelo prefeito suíno (que grande ator!) da pequena cidade costeira onde ele mora. A certa altura, uma virada de roteiro nos mostra que não só o poder público, mas também o mundo privado parece conspirar contra Kolya. Nessa aliança cruel, o destino não pode ser senão o pior possível. Andrei Zvyagintsev pinta aquele microcosmo da Rússia profunda como uma terra bruta e fria, metaforizada pelas leituras maquinais de sentenças jurídicas e a demolição selvagem de uma casa por uma escavadeira. Tudo muito sugestivo e forte nas imagens, mas não por isso ousado e genial como alguns querem fazer crer. A bela fotografia, premiada no festival especializado Camerimage, infelizmente não pode ser apreciada na projeção do Estação Net Rio 1, que está um breu nas cenas menos iluminadas e desprovida de contrastes nas demais. Basta comparar com as imagens do filme em outros suportes. Hoje em dia é preciso ter paciência de Jó para ir ao cinema.


1405106378_unbroken-movie-zoomSaquei uma mensagem quase cabalística em INVENCÍVEL, de Angelina Jolie. Para alguém ser considerado inquebrável, tem que ser posto à prova não uma, mas duas vezes. Durante a II Guerra Mundial, o corredor olímpico Louis Zamperini sobrevive a dois combates aéreos com seu avião atingido e, depois, como prisioneiro dos japoneses, cai duas vezes nas mãos do sádico Sargento Watanabe. O filme também se divide em duas metades: um thriller de sobrevivência no mar e um drama de prisioneiros de guerra. Tudo vem em dois, como pares de sushi. O roteiro, surpreendentemente co-assinado pelos irmãos Coen, não poupa nenhum dos lugares-comuns de cada gênero. Lança mão de uma rivalidade esportiva, levada a expoentes patológicos, para fazer a liga entre as duas partes do filme. De resto, é um espetáculo canônico sobre o tema da tortura e da resistência. Os espancamentos ritualísticos de Watanabe chegam perto de nausear o espectador e de esgotar todos os recursos de maquiagem de ferimento e sujeira disponíveis na Austrália. No fim das contas, tudo não passa de mais uma afirmação da superioridade dos olhos verdes da América sobre o caráter duvidoso de seus inimigos. Bull shit, e Angelina sabe disso.


Um dos poucos cineastas brasileiros regularmente dedicados ao infantojuvenil, Helvécio Ratton costuma combinar ingredientes tipicamente brasileiros com matrizes da fabulação universal. O SEGREDO DOS DIAMANTES, por exemplo, toma o mote da caça ao tesouro e o aplica às lendas de tesouros enterrados que Minas Gerais conservou de seu passado colonial. Um motivo melodramático – fazer dinheiro para salvar o pai – leva um menino e seus dois amiguinhos a disputarem com o vilão o acesso aos tais diamantes, seguindo pistas deixadas em livros dispersos. Numa Ouro Preto belamente fotografada por Lauro Escorel Filho, a aventura, porém, carece de gás e de charme para atingir seus objetivos. O uso de celulares e referências ingênuas à internet dão um verniz contemporâneo, mas a trama fica aferrada a um modelo tímido e pouco atual. Do ponto de vista pedagógico, eu questiono algumas atitudes dos pequenos heróis, tais como a dilaceração de um livro raro e a suposta venda ilegal de um diamante, e ainda uma visão acrítica da medicina privada (e cara) como única forma de salvar uma vida.


Acho improcedente a comparação que se faz das novas comédias globofílmicas com as chanchadas dos anos 1940 a 60. As chanchadas geralmente satirizavam filmes sérios hollywoodianos, baseadas no que Paulo Emílio Salles Gomes chamava de “nossa incompetência criativa em copiar”. Foi aquela mistura antropofágica de esculhacho e kitsch que, incompreendida na época, seria mais tarde valorizada pela crítica. As comédias atuais apenas tentam imitar as comédias vulgares americanas. Seriam, no máximo, a chanchada da chanchada, ou seja, puro café requentado. Tomemos OS CARAS DE PAU EM O MISTERIOSO ROUBO DO ANEL, atualmente em cartaz. Não há ali nenhuma irreverência dirigida a um modelo supostamente nobre. É apenas cópia barata de comédias que já avacalhavam os gêneros do thriller de assalto e do buddy movie. Não é das piores nas últimas safras, é bem verdade. Tem um ritmo razoável de ação e algumas tiradas divertidas, como os mafiosos portugueses e a loja de produtos ninja. Pode agradar a um público pouco exigente e sobretudo a crianças. Mas não tem paralelo com as aprontações de José Carlos Burle, Watson Macedo ou Carlos Manga. Nem Leandro Hassun tem a graça que justifique ser considerado um novo Oscarito. Vamos parar com isso.


São muitas as razões por que LIVRE é um filme tremendamente cafona. É cafona porque tem eeeeecos demais. Todo filme com eco é cafona. Cheryl Strayed não parece estar numa trilha em pleno deserto, mas caminhando numa daquelas cavernas cheias de reverberações. As vozes têm eco, as canções vêm em eco e a narrativa ecoa sem parar fragmentos do passado de Cheryl: a mãe doente, a égua doente, o casamento doente, os relacionamentos doentes, o pai violento… É cafona porque tudo soa a auto-ajuda, ramo literário a que pertence a real Cheryl. Então somos obrigados a suportar frases decisivas como “Eu nunca me sentei ao volante da minha vida” ou “Você pode trilhar o caminho da beleza”, além de citações de James Michener. É cafona porque Reese Witherspoon não convence ter andado sequer 3 km no filme, que dirá os 1760 km da Pacific Crest Trail, cruzando com cobras, potenciais estupradores e outros bichos do mato. É cafona porque Cheryl aparece em várias idades, mas em quase todas representada pela mesma cara de panqueca dormida de Reese Witherspoon. É cafona porque nunca partilhamos a angústia e a busca da personagem, ficando apenas com os clichês da moça despreparada que sai numa aventura solitária. É cafona porque o roteirista Nick Hornby escreveu “Alta Fidelidade” e não tinha o direito de construir uma estrutura tão dispersiva. É cafona porque o diretor Jean-Marc Vallée assinou “Clube de Compras Dallas” e não tinha o direito de fazer um filme tão desinteressante. Finalmente, é cafona porque, a essa altura, ficar repetindo “El Condor Pasa” em ecos ao longo de um filme inteiro é cafona, e pronto.

2 comentários sobre “Vítima, heróis, caras de pau e uma mochileira

  1. Morri de rir com a cafonália escancarada que vc listou para o filme da “cara de panqueca” Reese Whatisthis?spoon.
    Um outro colega nosso (Octavio Caruso) disse que era “uma Barbie no deserto cuja pele nunca se queima ao sol”. Ou seja, vai ser o filme mais zoado do ano, merecidamente.
    E Leviatã é isso mesmo: bonito, mas mais da mesma velha história de corrupção e abuso de poder contra um infeliz muito azarado. Os outros, não vi.

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