Michel Brault, uma câmera no ombro e a verdade na cabeça

Antes que o Cinema Direto americano e o Cinema Verdade francês revolucionassem a forma como se faziam documentários no início dos anos 1960, outras cinematografias vinham testando condutas e técnicas que pavimentaram o caminho em fins da década anterior. O Free Cinema inglês foi um deles. Outro, de fundamental importância, foi o Cinema Direto canadense, objeto da bela mostra que começa hoje (terça) na Caixa Cultural-RJ.

São longas, médias e curtas, documentais e ficcionais, que não só anteciparam várias conquistas do cinema moderno, como catalisaram os movimentos de afirmação da cultura francófona dentro do Canadá de então. “Os conflitos linguísticos e identitários de um país dividido entre duas culturas, a anglófona e a francófona, afloravam. E o cinema, como um instrumento de comunicação do Estado, foi acionado para o estabelecimento de um elo discursivo em meio a um projeto maior de coesão nacional”, afirma o curador da mostra, Fernando Weller, professor da Universidade Federal de Pernambuco. Foi em 1956 que o National Film Board do Canadá, havia 18 anos sediado em Ottawa, reinstalou-se em Montreal e abriu-se à francofonia.

A programação inclui filmes cruciais de Michel Brault, Claude Jutra, Pierre Perrault, Gilles Groulx, Allan King, Rolf Koenig e Roman Kroitor. No dia 1º de agosto, às 19h, haverá uma palestra com o professor Thomas Waugh, da Concordia University (Montreal), com mediação de Fernando Weller. Confira a programação completa aqui.

Destaco neste artigo o trabalho de Brault por ter sido ele o que maior influência direta exerceu sobre o cinema francês dos 60, chegando pessoalmente ao Cinema Verdade e à Nouvelle Vague.

Les Raquetteurs (Os corredores de raquetes de neve), um curta de 1958 codirigido por Gilles Groulx, tem importância vital para o direto canadense. A câmera leve carregada por Brault no ombro (técnica desenvolvida por ele junto aos fabricantes da Éclair), o som em grande parte sincronizado com a imagem nas tomadas externas e a ausência de qualquer narração ou entrevista representaram uma imensa novidade. Há uma mobilidade extraordinária na filmagem das competições, com mudanças constantes de ponto de vista resultando num fluxo de ação contagiante. Fica claro também o olhar atento dos cineastas para os aspectos excêntricos de um esporte quase ridículo, praticado numa cidade interiorana do Québec. O Clube dos Raqueteiros de Sherbrooke recebe colegas de outras localidades para um torneio seguido da coroação da rainha dos raqueteiros.

Consta que Brault falsificou o pedido de película virgem do Office National du Cinéma para fazer um filme três vezes maior que os 4 minutos encomendados. O resultado fascinou Jean Rouch a ponto de chamar Brault para fotografar o desbravador Crônica de um Verão (1960).

lalutteInovações técnicas e faro para as excentricidades se combinam também no curta A Luta, de 1961, assinado por Brault em conjunto com Claude Jutra, Claude Fournier e o técnico de som Marcel Carrière. A intenção inicial era fazer uma denúncia do caráter fake da luta livre. Roland Barthes interferiu no projeto e sugeriu que eles não julgassem o esporte, dada sua importância social para a gente comum. Assim, os realizadores registraram flashes da preparação dos lutadores e uma concorrida competição no Forum de Montreal. Mas as falcatruas não deixam de estar evidentes, seja nas instruções de um técnico, seja nas simulações patéticas do ringue, que uma câmera em close pode revelar muito mais que o olhar um tanto distante da exaltada plateia. O filme é conduzido exclusivamente pela ação, enfatizando os grunhidos dos contendores e a “fabricação” dos choques corporais. A única interlocução direta com a câmera são as bravatas igualmente teatrais de um perdedor no vestiário.

Outro curta que testa procedimentos do cinema direto, quase como um portfólio, é Québec-USA ou A Invasão Pacífica (1962), de Brault e Jutra. O som direto, como em muitos filmes dessa época, é sincronizado apenas parcialmente, pois os acidentes de emparelhamento som-imagem ainda eram frequentes. Nos primeiros momentos desse curta, quando turistas são entrevistados por guardas na fronteira, pode-se notar a estratégia de “enganar” a sincronia através de golpes de montagem.

De qualquer forma, a fala ganha importância essencial, já que Québec-USA trata da invasão de turistas e marinheiros americanos na Québec de 1961. O curta tem quatro partes mais ou menos demarcadas: aulas de francês para americanos, um passeio turístico em carro conversível pela cidade, uma parada cívica avidamente registrada por turistas americanos e as paqueras de marinheiros no pitoresco Terrace Dufferin. Nas aulas, a estrela é o som sincrônico. No passeio, a mobilidade da filmagem num carro com três passageiros, o cinegrafista e o técnico de som. Na parada, é a montagem, que brinca com acelerações e inversões de eixo para satirizar os movimentos dos soldados. Nas paqueras, é o uso intensivo da candid camera para flagrar ações espontâneas. A filmagem com câmera escondida, aliás, já vinha sendo explorada por alguns anos e está na gênese do direto.

pour la suiteEm 1963, Michel Brault se juntaria ao também pioneiro Pierre Perrault para trazer à luz um longa seminal do Cinema Verdade: Para Aqueles que Virão (Pour la Suite du Monde). Este filme reconstitui a pesca da beluga (baleia branca) tal como era feita em outros tempos. Perrault queria inicialmente representar os habitantes da Île-aux-Coudres com atores profissionais. Foi o produtor Fernand Dansereau quem apresentou Perrault a Michel Brault, levando o projeto para a seara do documentário.

Na história do cinema documental, Pour la Suite du Monde representa uma revolução na ideia de reencenação. Se Robert Flaherty, em Nanook, o Esquimó e O Homem de Aran, dissimulou o fato de que estava encenando velhas práticas de pesca já em desuso, no filme de Perrault essa retomada é o próprio assunto do filme. Os ilhéus discutem como farão para reavivar um método abandonado havia quase 50 anos. Explicitamente, o filme é o que os leva a se lançar mais uma vez à captura da beluga por meio de um cercado de varas no meio do mar. A câmera de Brault acompanha todo o processo de convencer os mais velhos, montar o aparato e mobilizar a vila para o grande momento. E por fim transportar uma beluga viva até um aquário em Nova York. Não há, portanto, encenação, mas uma ação deliberada de voltar-se para o passado a fim de manter viva uma tradição.

O prazer de ver o filme se espalha pela visão idílica da “Ilha das Avelaneiras”, a graça peculiar dos personagens e seu dialeto, a sensibilidade da câmera em seguir os passos e gestos das pessoas, a sutil passagem do encenado para o espontaneamente vivido.

Michel Brault terá ainda mais três filmes na mostra: Elogio ao Chiac (1969), curta a respeito de um dialeto falado em Québec; L’Acadie, I’Acadie?!? (1971), longa documental sobre um movimento de estudantes em prol da língua francesa no Canadá, codirigido por Perrault; e o longa de ficção Entre o Mar e a Água Doce (1965), tido como um marco da Nouvelle Vague canadense. Admirável também é a sua fotografia em Meu Tio Antoine, o clássico de Claude Jutra.

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