Nunca li Ricardo Piglia, e tê-lo lido parece fundamental para se embarcar plenamente nesse filme de Andrés di Tella. Afinal, é um documentário sobre um escritor às voltas com seus diários, que constituem, em larga escala, sua própria matéria literária. Minha postura, então, foi de captar o tanto quanto possível o que di Tella me oferecia. Uma informação era essencial: Emilio Renzi, o personagem de toda a obra de Piglia, se confunde frequentemente com seu autor, a ponto de este ter pensado em publicar seus diários, transcritos literalmente, como os diários de Emilio Renzi.
Andrés di Tella, sofisticado narrador documental (Montoneros, una Historia, Fotografias, La TV y Yo) trabalha na seara do filme-ensaio, em que reflexões se misturam a indagações e a subjetividade é trabalhada em seus meandros. Piglia está revisando os diários (que mantém desde os 16 anos de idade) e selecionando trechos para ler diante da câmera. Di Tella, por sua vez, pergunta-se como filmar os diários de um escritor e compõe sua própria escritura de imagens. Assim, cenas da História argentina se alternam com arquivos de gente desconhecida, como a afirmar que a história (o diário) de alguém poderia ser de qualquer pessoa, assim como uma autobiografia – diz Piglia – é sempre um composto de várias autobiografias.
“Existe um personagem desconhecido em meus diários”, aponta o escritor a certa altura, referindo-se a um “eu” às vezes irreconhecível. A alteridade não se opõe à experiência íntima do diário. O de Piglia, particularmente, é um relato meio ficcional, meio experimental literário, de uma das suas possíveis vidas. Em suas lacunas estão implícitas outras vidas possíveis. E se ele não saísse de Adrogué para Mar del Plata em 1957, teria se tornado um escritor? E se fosse peronista como o pai? E se…
Em meio às filmagens, Piglia adoeceu seriamente de ELA (esclerose lateral amiotrófica) e, numa das últimas cenas, parece tomar uma atitude drástica em relação aos diários. Para esse escritor que fez dos 327 cadernos manuscritos e recheados de documentos encartados uma permanente oficina de criação, o filme é mais um subproduto que se abre à colaboração do outro.