Como morre um rei, como nasce um ídolo

Sobre os filmes A MORTE DE LUÍS XIV e O ÍDOLO

Aos 72 anos, o mítico Jean-Pierre Léaud tem uma atuação absolutamente singular como um moribundo Rei Sol em A MORTE DE LUÍS XIV. Há muito tempo descuidado com o físico e a aparência, envelhecido precocemente, ele empresta sua fragilidade, seus tremores e seu aparente alheamento do mundo a esse personagem extraordinário. Em vários momentos, ele parece um ator caquético que esqueceu suas falas, o que corresponde com exatidão ao estado do rei. No plano mais impressionante entre todos os planos impressionantes construídos pelo catalão Albert Serra, e o único a conter música, Léaud/Louis contempla o vazio de seu leito real, o olhar impenetrável fixado em algum ponto da memória ou do esquecimento, o profundo silêncio de um rei a sós consigo mesmo. Uma natureza morta.

Baseando-se em relatos de nobres da época, Serra concentra-se no quarto exíguo onde o rei agoniza cercado de súditos, médicos, bajuladores e fofoqueiros da corte. Uma encenação rigorosa e minimalista produz um efeito inverso: ficamos imersos numa espécie de documentário sobre os aposentos de um monarca em estado terminal. As derradeiras intrigas do reinado de Luís XIV passam pela beira do seu leito de morte. As mesuras intermináveis, as falas mansas e pausadas, os aplausos para o sucesso do rei indisposto ao mastigar um biscoitinho, as mezinhas com que se tenta estancar a gangrena e o apodrecimento da perna real, tudo são detalhes capazes de nos transportar para a realidade de um outro tempo.

Este é um filme sobre a vulnerabilidade dos poderosos e as decisões de um reino nas mãos de um quase cadáver. E também sobre a impotência da ciência no século XVIII, que se baseava em especulações quase poéticas e só tinha acesso ao interior dos corpos depois da morte. Albert Serra e Jean-Pierre Léaud fizeram uma obra única na história do cinema. Uma porta que nos permite adentrar na pintura da época e sentir a respiração e os humores que os quadros não podem externar.



Em O ÍDOLO, o diretor palestino Hany Abu-Assad concilia duas vertentes da sua filmografia: os dramas da condição palestina (“Paradise Now”, “Omar”) e as tentações do cinema comercial (“Entrega de Risco”). Ele conta, em tom bastante ficcionalizado, a saga real de Mohammed Assaf, jovem cantor de Gaza que conseguiu a façanha de participar – e vencer – uma edição do programa Arab Idol.

Rapaz exemplar, ele sempre encontra um anjo da guarda para ajudá-lo na sua obstinada busca do sucesso, o que significaria também levar a voz dos territórios ocupados a uma grande audibilidade internacional. Um desses anjos é uma produtora do Arab Idol vivida pela bela atriz Nadine Labaki. Outra é a irmã mais nova de Mohammed, símbolo da persistência árabe capaz de transcender a vida.

O filme aborda a infância, quando Mohammed e sua pequena turma tocava em mesquitas e casamentos em troca de dinheiro e experiência, e a aventura posterior, em 2012, já numa Gaza muito destruída pelos ataques israelenses de 2008 e 2009. A visão da cidade é sempre muito ilustrativa no que diz respeito tanto à estética das festas e ao colorido das ruas quanto às marcas deixadas pelo conflito com Israel. O humor comparece também para exemplificar as paranoias da população de Gaza, como no episódio de uma performance transmitida por skype para Ramallah e sabotada por um gerador de eletricidade.

Se o filme não chega a convencer completamente é pela forma mágica e light com que as coisas acontecem para Mohammed. Por mais verdadeiro que possa ter sido, não é verossímil que tantos pequenos milagres e coincidências tenham ocorrido para o cantor superar as muitas barreiras que o separavam do sonho no Cairo e em Beirute. O canto de Mohammed opera prodígios instantâneos que mais parecem fenômenos da vida de um santo. Mas, pensando bem, talvez não seja mesmo exagero. A montagem final, combinando cenas documentais e dramatizadas da sua vitória, celebrada como um triunfo nacional nas ruas de Gaza, não deixa dúvidas de que Mohammed Assaf virou uma espécie de ícone sagrado para o povo palestino.

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