RITO DO AMOR SELVAGEM no Cinesesc (SP)
O Cinesesc vai estrear nesta segunda-feira (16/9), às 20:30, o documentário de média metragem Rito do Amor Selvagem, que recupera um pouco do que foi o memorável espetáculo homônimo de José Agrippino de Paula (1937-2007) e Maria Estela Stockler, montado em 1969 na capital paulista. Eram tempos de Cinema Marginal e teatro de vanguarda inspirado no The Living Theatre de Nova York.
Faz exatos 50 anos que Agrippino e sua mulher Maria Estela criaram aquela peça visceral e anárquica, em que os atores improvisavam à vontade sobre os temas do amor e da liberdade, num gesto contracultural que se opunha tanto à ditadura quanto à arte bem comportada. Poucos registros ficaram além de fotos de Jorge Bodanzky – que havia fotografado em 1968 o longa Hitler IIIº Mundo para o mesmo Agrippino – e da memória de quem participou ou assistiu.
Bodanzky e Stenio Garcia são alguns dos entrevistados no doc de Lucila Meirelles, uma realização da Sesc-TV. Stenio fazia cerca de 12 papéis no palco, entre eles o de Marlon Brando. Tom Zé e o artista multimídia José Roberto Aguilar, velho parceiro de Lucila, também trazem sua contribuição performática num filme que pretende evocar o Rito com ferramentas mais ou menos correspondentes nos dias de hoje.
Lucila Meirelles é um dos expoentes da conexão entre documentário e videoarte no Brasil desde os anos 1980. Já havia homenageado Agrippino em 1988, fazendo ecoar o título do seu romance Panamerica na instalação “pop-tropicalista” Sinfonia Panamerica. Voltando agora ao personagem, ela lança mão de uma catadupa de efeitos visuais, experimentações narrativas e uma veloz fragmentação para rimar com o presumível caos do Rito. Usou também alguns áudios de José Agrippino e performers para personificar sua mitologia e simular movimentos a partir do que sugerem as fotos sobreviventes.
O resultado é visualmente atraente, pulsante e às vezes psicodélico, mas talvez impressionista demais. Faltam informações um pouco mais consistentes sobre o espetáculo, os temas trabalhados dentro da anarquia e o seu sentido para a época.
Para quem sabe pouco ou nada sobre José Agrippino de Paula, transcrevo abaixo um trecho do depoimento de Jorge Bodanzky no meu livro O Homem com a Câmera (2006):
” De todas as experiências dessa fase [Cinema Marginal de fins dos anos 1960], a mais radical foi sem dúvida a de Hitler IIIº Mundo. E para falar dela preciso reportar-me à convivência com seu autor, o incomparável José Agrippino de Paula. Ele se diferenciava dos mais engajados politicamente, como João Batista [de Andrade]. Sua proposta era de viver o estado da arte, inspirando-se no The Living Theatre. A casa dele, bem perto da minha em Higienópolis, era um ponto de encontro da contracultura paulista de então. Não havia móveis, mas banheiras, pneus, câmaras de ar de trator, coisas assim. As pessoas se sentavam por ali, consumiam suas drogas e “viajavam” assistindo a filmes Super 8 ao som de músicas do Pink Floyd. Fosse nas atitudes mais anticonvencionais, fosse no intenso debate cultural que fomentava, o Agrippino fez a cabeça de toda uma geração naquele momento em São Paulo, inclusive a minha. Vale a pena ler o que Caetano Veloso escreveu sobre a sua “inteligência sui generis” em Verdade Tropical.
Agrippino tinha acabado de lançar o romance Panamerica, uma moderna epopéia recheada de alusões a celebridades e situações do cinema norte-americano. Resolveu, então, dirigir um filme sem nunca ter pensado seriamente em cinema. Na verdade, para ele, fazer literatura, teatro, cinema ou um happening era a mesma coisa. Em Hitler IIIº Mundo, Agrippino simplesmente criava as coisas diante da câmera e deixava que eu resolvesse o resto: produção, decupagem, fotografia, sonorização posterior etc. Depois de inventar a cena, eu ficava filmando com inteira liberdade e ele se afastava às gargalhadas. Se o filme tivesse som direto, ouviríamos seu riso na maior parte do tempo.
(…)
Para além da amizade, formei com Agrippino uma parceria durante longo período. Filmei e fotografei sua peça Rito do Amor Selvagem, atravessada pelo mesmo sopro anárquico, com Stenio Garcia fazendo o papel de Marlon Brando e Flávio Porto, o de Mussolini. Mas o registro em 16mm, que eu saiba, se perdeu.Durante esse período esfuziante, Agrippino encantou-se pela independência do Super 8, estimulado e orientado em grande parte por mim. Nos anos 1970, quando viveu na África com sua mulher, a dançarina Maria Esther Stockler, realizou filmes pioneiros sobre as origens do candomblé. Na Bahia, entre outras coisas, tentou montar um Fausto só com crianças dos terreiros de candomblé. Apesar de todo o culto, passou décadas no ostracismo. Afastou-se de tudo vitimado por uma esquizofrenia e só a partir de 2002 foi redescoberto e revalorizado. Antes tarde do que nunca.”