1917
1917 sobe ao panteão dos grandes filmes de guerra não tanto pelo seu enredo, relativamente simples, mas pela façanha de sua realização e como ela transmite a tensão e o horror de estar em meio ao conflito. Nada mais básico do que a saga dos dois soldados encarregados de levar uma mensagem através do front inimigo até outro batalhão, a tempo de cancelar um ataque e evitar um massacre das forças britânicas na I Guerra Mundial. A inspiração veio do avô de Sam Mendes, que foi incumbido de missão semelhante.
Trata-se de uma tarefa em linha reta. Os dois rapazes têm oito horas para alcançar o objetivo e não podem pestanejar nem olhar para trás. Um deles tem um irmão no outro batalhão, que está ameaçado por uma armadilha dos alemães. Chegar a tempo é, portanto, uma questão não só de pátria, mas também de família. Através de muros de arame farpado, trincheiras abandonadas e casamatas traiçoeiras, arrastando-se na lama e tropeçando em cadáveres e animais mortos, só lhes resta avançar.
Para dar conta desse trajeto inexorável, Sam Mendes optou por uma narrativa igualmente incessante, num falso plano contínuo de duas horas de duração. Ainda que se percebam claramente alguns cortes (em áreas escuras, explosões, mergulhos e num desmaio do cabo Schofield), cada longo plano-sequência leva ao paroxismo o tempo real, as distâncias reais e o esforço real dos atores.
Sustentar tal realismo em movimento permanente, terrenos irregulares e situações as mais diversas – com destaque para a queda e explosão de um avião no mesmo plano em que estão os dois soldados – exigiu técnicas arrojadas da equipe de fotografia dirigida pelo grande Roger Deakins. As câmeras eram conduzidas em steadicams a pé e continuamente acopladas a jipes, motocicletas, gruas e drones, passando de um para outro sem interrupção das tomadas (veja este making of em inglês). A estabilização era feita pelo sitema Trinity da Arri, que combina estabilizações mecânica e eletrônica. Não menos extraordinária é a direção de arte, que provê os mais diferentes cenários, incluindo uma cidade destruída e cerca de dois quilômetros de trincheiras construídas para os extensos travellings ininterruptos.
Longas-metragens em um único plano sem cortes (ou com cortes dissimulados) não são novidade desde Festim Diabólico (1948), de Hitchcock. Outros exemplos notáveis são Arca Russa, de Sokurov, Birdman, de Iñarritu, Time Code, de Mike Figgis, e os brasileiros Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro, e Estamos Vivos, de Filipe Codeço. O que 1917 tem de mais espantoso é a quantidade de desafios a que se propôs e a organicidade entre tema e estética. O movimento contínuo reflete o senso inabalável de dever e os compromissos pessoais assumidos por Blake e Schofield.
A guerra não está ali como fato político nem como motor de ação, mas sim como uma prova individual, inclusive de amizade, para os dois soldados. A sucessão de perigos no caminho deles tem semelhanças com reality shows de sobrevivência, o que não é exatamente um grande elogio. Mas a alternância de momentos grandiosos com cenas intimistas, o resultado técnico primoroso e as atuações intrépidas de George MacKay e Dean-Charles Chapman levam o filme a um patamar muito superior. No quesito elenco, note-se o luxo adicional de ter os superastros Colin Firth e Benedict Cumberbatch em pequenas pontas como os oficiais nos dois extremos da linha de comando.
Nota: Não publico aqui o trailer porque, todo entrecortado, não tem como sugerir o que é o filme.
Há mais de 60 anos, Stanley Kubrick deixou a sua marca de grande criador cinematográfico ao dirigir “Paths of Glory” (Glória Feita de Sangue). Neste filme, que se desenrola durante a Primeira Grande Guerra (1914-18), ele fascinou os espectadores com espantosos travellings ao longo de trincheiras, o que, na época, era uma novidade técnica extraordinária. Além disso, o filme tinha um conteúdo ético e político indiscutível: era uma eloquente condenação da guerra e da covardia moral da elite do exército francês. A tal ponto que o General De Gaulle, então presidente da França, proibiu a sua exibição (que foi suspensa mais tarde). A cereja do bolo era ainda uma grande interpretação de Kirk Douglas. E, como se não bastasse, havia uma sequência final filmada em tempo real que deixava definitivamente horrorizados e revoltados os espectadores. Pois bem, comparado com essa obra-prima, “1917” é não mais que um filme tecnicamente muito bem feito, porém sem profundidade e sem oferecer praticamente nenhuma matéria à reflexão sobre a guerra, seus propósitos e seus efeitos. Seus “heróis” são soldados valentes porém, antes de mais nada, obedientes às ordens recebidas de cima; ao passo que o coronel Dax, interpretado por Kirk Douglas em “Paths of Glory”, era um rebelde, um militar que enfrentava de peito aberto as ordens arbitrárias dos generais que o comandavam. Acho, enfim, que “1917” não merece todos os elogios que tem recebido e muito menos o Oscar de melhor filme ao qual está concorrendo. O cinema já foi uma arte mais interessante, intelectualmente e emocionalmente muito mais estimulante.
Concordo inteiramente com suas ponderações, embora continue achando “1917” um belíssimo filme. A diferença para o do Kubrick é a diferença entre um ótimo filme e uma obra-prima.