ONE OF US na Netflix
No Brooklyn de Nova York residem cerca de 300 mil judeus hassídicos. Eles formam uma comunidade ultraortodoxa iniciada por sobreviventes do Holocausto que, para manter-se unida, observa um restrito código de vida. São proibidos filmes, livros, internet, músicas e todo tipo de cultura tida como “do mundo secular”. O documentário ONE OF US entrevê esse grupo pelas frestas, no fundo da cena, enquanto se ocupa de três jovens que decidiram romper com os preceitos.
Etty é mãe precoce de sete filhos e sofria abusos do marido e dos parentes dele. Decide pedir o divórcio e luta para não perder a guarda parcial das crianças. Arye é um rapaz em crise de identidade, que não se sente integrado em nenhuma parte e enfrenta o vício da cocaína. Luzer, o mais descolado dos três, leva uma vida plenamente laica de candidato a ator em Los Angeles à custa de não ter qualquer contato com os filhos e fugir de relacionamentos.
No período em que os acompanhou, entre 2015 e 2017, o filme presenciou alguns momentos cruciais de sua passagem para “o outro lado”. Por exemplo, o dia em que Arye podou sua peyot (cachos laterais) ou que Etty resolveu não mais esconder o rosto da câmera. Mais grave ainda é a revelação de Arye sobre as violações sexuais sofridas quando menino numa colônia de férias hassídica.
As diretoras Heidi Ewing e Rachel Grady já abordaram assunto semelhante em Jesus Camp, que mostrava crianças sendo doutrinadas numa colônia de férias evangélica do Meio-Oeste dos EUA. Elas rezavam a cartilha da extrema direita diante de um George Bush de papelão e aprendiam a morrer pela pátria se fosse necessário. Em ONE OF US vemos um flash da campanha eleitoral dos hassídicos a favor de Trump.
Etty, Arye e Luzer sofrem, em medidas diferentes de violência, a pressão, a discriminação e a punição da comunidade pelo pecado de mudar de vida. Infringir os rigores das normas resulta em perder proteção, ficar à margem da comunidade e impotentes diante de um judiciário comprometido. O papel do inimigo principal é reservado à organização Footsteps, de apoio a ex-hassídicos, frequentada por Etty e tida pelos ortodoxos como um desencaminhador de almas.
Esse painel é descrito no filme com uma formidável concisão e atenção aos detalhes. Numa estética próxima do filme policial, parte das tomadas externas foram feitas com câmera discreta e outra parte simulando a mesma situação por questão de estilo. A relação com os personagens é confessional e íntima, sem intervenção direta das realizadoras. Assim elas conseguem combinar uma visão de dentro daquela congregação com uma perspectiva investigativa de fora. Uma estratégia documental muito eficiente.
Leiam também a resenha de Paulo Lima sobre Os Pecados de Motti, comédia da Netflix que dialoga com o tema desse documentário.
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