A Mostra Eduardo Coutinho do Canal Brasil leva ao ar hoje (domingo), às 19 horas, o documentário mais puro e um dos mais magnetizantes do mestre. A seguir, o pequeno comentário com que abro a sessão:
Em 2005, Coutinho conseguiu realizar um velho sonho: fazer um documentário a partir do zero. Com uma pequena equipe que incluía o diretor de fotografia Jacques Cheuiche e o produtor executivo João Moreira Salles, ele foi para o interior da Paraíba sem nenhuma preparação. Sem pesquisa prévia, sem personagens, sem locações nem temas definidos. No município de São João do Rio do Peixe, o filme descobre o Sítio Araçás, uma comunidade rural onde vivem 86 famílias, a maioria ligada por laços de parentesco. Graças à mediação de uma jovem professora, a equipe chega aos moradores, em sua maioria idosos. Eles simplesmente falam de suas vidas, marcadas pelo catolicismo popular, pela hierarquia, pelo senso de família e de honra. Enfim, um mundo em vias de desaparecimento.
Ao responderem às perguntas simples e diretas de Coutinho, as personagens de O Fim e o Princípio tratam de um cotidiano muito singelo, mas fazem também uma elaboração filosófica às vezes intrigante. O repertório de parábolas bíblicas, com relatos que vão do gênese ao apocalipse, compõe uma espécie de metafísica popular, expressa quase sempre de maneira surpreendente. Talvez mais que outros trabalhos de Coutinho, este é um filme puramente de falas. Ouvir a oratória desses sertanejos, a riqueza de sua expressão, é uma experiência deliciosa.
Aqui também o filme se constrói diante de nós, à medida que os personagens indicam e apresentam uns aos outros. Estamos, portanto, na essência do método desse grande artíficie do documentário. Um filme para se ver e, principalmente, ouvir.
Quando assisti achei este filme a impressão que me ficou foi a de ser o menos interessante de todos os que vi do Coutinho.
Eu acho o mais interessante depois do Cabra.
Não conheço esse filme ! Bela oportunidade !
Na Abertura do É tudo verdade, aqui no Rio, o João Moreira Salles afirmou que ajudou a montadora a editar o trecho do material exibido. E, se não me engano, seu nome consta nos créditos tb com essa função…No comentário anterior é creditado à Jordana e ao Coutinho ( que, aliás, não editou o material).
“pré-montagem: Eduardo Coutinho e Jordana Berg”, está nos créditos do filme.
Republicou isso em reblogador.
ERRATA: “capacidade que O documentarista-mor brasileiro deve ter aprimorado”…
Dessa vez, duas coisas me intrigaram, C.A.M: “Talvez mais que outros trabalhos de Coutinho, este é um filme puramente de falas”. Os trabalhos — documentais — de Coutinho são, todos, constituídos de falas, e a vossa fita métrica para achar “mais” falas em O FIM E O PRINCÍPIO do que nas outras obras dele, deve ser uma fita muito especial, quem sabe.
A segunda coisa que me intrigou, já intrigou este-locutor-que-vos-fala em textos outros, também sobre o trabalho de Coutinho, claro: não seria a hora de precisar que o talento maior desse documentarista seria saber OUVIR, direta e simplesmente?
É claro que isso significa também saber dialogar — sendo que, num documentário, o “invasor” (digamos assim), ou seja, o documentarista com real vocação para OUVIR deve limitar ao máximo a sua interatividade com os “personagens” reais falando a respeito de si próprios no mais das vezes…
Então, Eduardo Coutinho era um grande — e paciente –aparelho auricular provido de lente para “escutar” igualmente com o olho de uma câmera. Era isso. O resto, eram as pessoas (que, nem sempre, ele mesmo escolhia), falando, falando e falando…
Tem a minha admiração, essa virtude de saber escutar. Aliás, não deixa de ser uma forma de sábia modéstia o “dar voz ao outro” — capacidade que documentarista-mor brasileiro deve ter aprimorado nos seus anos de trabalho no “Globo Repórter”, graças ao convite que lhe fez o cineasta Paulo Gil Soares… um nome, por sinal, injustamente apagado (?) de tudo quanto leio a respeito de Coutinho, cuja “aura” a tragédia do final da sua vida só faz tornar ainda maior, aumentando-a por sobre todas as vozes.
Minha esperança é que venha a diminuir um pouco o grosso silêncio sobre a contribuição do talentoso Gil, cineasta de momentos altos no documentário (“Memória do Cangaço” etc) e também na ficção (“Proezas de Satanás na Vila do Leva-e-Traz”)…
Bom domingo!
Caro Fernando, minha colocação a respeito do coeficiente de falas nesse filme, precedida por um cauteloso “talvez”, se deve ao fato de que Coutinho praticamente não faz pausas entre os depoimentos. Não há planos de transição como em “Edifício Master”, nem espaços vazios como em “Santo Forte”. Não há sequer um interesse temático do entrevistador, como em outros filmes. Com isso, o foco não está nos temas, mas na musicalidade da fala, nas surpresas que as conversas reservam, etc.
O método do Coutinho combinava, sim, a virtude de saber ouvir e puxar conversa com simplicidade, com uma sabedoria na escolha dos personagens ouvidos nas pesquisas prévias. Em “O Fim…” não há sequer isso, mas só o encontro puro e simples, de primeira, e a fala soberana.
Quanto ao Paulo Gil, você tem toda razão. Alguém precisa se debruçar sobre aquele autor, sua obra e sua capacidade de aglutinação.
Lendo …rastros deu vontade de participar dessa roda de conversa sobre (com) Coutinho. Abs. Noemi
Já está participando, Noemi. Abraço
Notinha: um pedaço de Real de Santo Forte.
Na abertura da versão paulista da 19ª edição do “É tudo Verdade…” vimos um curta, ou um fragmento de um filme originalmente feito para acompanhar o DVD de Santo Forte (2012). Neste, Coutinho aparece magro, se equilibrando nas pernas dizendo para uma personagem que estava ali só por insistência do seu produtor, mas “esse filme não vai dar certo”. Sentindo-se obrigado a revisitar os personagens de seus filmes, o cineasta segue resmungando “não vai dar certo porque já conheço vocês”. Cambaleando pelas escadarias irregulares que o levaram à casa da sua personagem Theresa de Santo Forte, visivelmente contrariado e pessimista, Coutinho vai abrindo caminho para o documentário se enfiando nas quebradas e becos da favela, agora “reurbanizados”.
De fato, estávamos diante de um filme não deu certo. A entrevista idealizada pelo documentarista não aconteceu. Recebido por Theresa com tamanha simplicidade, intimidade e liberdade demolidora, o cineasta aceitou logo de início a sua escolhe de falar “lá fora”, e não na sala em frente às imagens do seu santuário como ele havia sugerido. Dirigindo sua própria entrevista falando naquele tom de “confissões de menina”, a personagem segue falando atropelando suas perguntas e vai produzindo um discurso um tanto delirante. Conta seus segredos, fala de sexualidade, de ressentimentos, de luta de classe, de condições trabalhistas, religião e desejos como se estivessem a sós e se aquela conversa iniciada com o cineasta, em Santo Forte, não tivesse sido interrompida no tempo.
Mas, é na sequencia em que o diretor oferece presentes, fotos e recortes de jornais, à personagem que Coutinho se contraria e um filme “dá certo”. Neste, há uma troca mútua de afetos, o cineasta se entrega e compartilha a sua alegria do reencontro.
Na sequencia final, o cineasta aparece de costas para a câmera, atrás de um pedaço de concreto olhando para a Theresa (e familiares) que está, em segundo plano, de pé na porta da casa. Esta cena final é ambígua e feliz se pensarmos nela como um instante em que o documentarista brinca de esconde-esconde, como se o concreto fosse sua câmera, e assim ele se despede da sua personagem, do seu Santo Forte, do Cinema brasileiro e do público. Pode-se dizer que nesse curta-documentário, pré-montado por Coutinho e Jordana Berg, a personagem Theresa respondeu em ato a pergunta feita pelo cineasta ao final de Santo Forte – você é feliz?
O que ela respondeu lindamente com outra – “tem que responder essa pergunta?”.
Singular essa personagem deixa algo nas fissuras do seu discurso a possibilidade de tantos outros encontros do cineasta com o seu Santo. Ou seja, ao que tudo indica, ela vai continuar esperando a sua volta (talvez encarnado, segundo sua religião?) e falando dessa sua impossibilidade de tudo dizer sobre sua alegria de viver – “sabe Coutinho, vou te dizer uma coisa que eu nunca falei pra ninguém…”. Assim, Tehresa tece no tempo a sua alegria de ter tido essa conversa única com o seu Coutinho. (Noemi de Araujo, 05/04/2014)