Corpos negros importam

M-8 – QUANDO A MORTE SOCORRE A VIDA na Netflix

Veículos do Exército ocupam as ruas do Rio de Janeiro, especialmente no entorno das favelas, durante a desastrosa intervenção do governo Temer. As estatísticas de jovens negros mortos pela polícia não param de crescer. Aos vivos cabem os lugares de sempre: empregados, policiais, trabalhadores menos qualificados. Maurício (Juan Paiva) é uma exceção. Cotista, ele estuda Medicina na UERJ, o único preto numa turma de brancos. Nas aulas, percebe que todos os cadáveres trazidos para os estudos de dissecação são de pessoas negras. Um deles ensina o que Maurício deve fazer: abrir os olhos.

M-8 – Quando a Morte Socorre a Vida é a trajetória de conscientização do rapaz quanto ao lugar que a sociedade brasileira reserva aos de sua cor. O ponto de partida do argumento lembra a história real do médico Estefânio Neto, contada no documentário Dentro da Minha Pele, de Toni Venturi. No seu dia a dia, Maurício depara-se com o preconceito em todas as esferas, partindo não somente de brancos. Começa, então, a identificar-se com um dos cadáveres, o M-8 do título, o que o leva tanto a manifestações contra o racismo quanto ao terreiro de candomblé frequentado por sua mãe, uma técnica de enfermagem batalhadora (Mariana Nunes).

No limite do sobrenatural (mas bem aquém da fábula de Morto Não Fala), M-8 privilegia a análise social do preconceito e de seu efeito sobre as vítimas. O namoro de Maurício com uma colega branca (Giulia Gayoso) joga luz sobre as camadas cinzentas que existem entre o racismo interiorizado e sua negação consciente. O diretor Jefferson De entende do que está falando, ele que foi um dos poucos negros a frequentar a USP e faz um cinema cheio de convicção a esse respeito.

Mas é justamente essa convicção que torna o filme sobrecarregado de mensagens e de estereótipos, parecendo às vezes um portfólio de demonstrações de racismo. Certos diálogos soam explícitos demais, como quando Maurício desabafa: “Às vezes eu penso que tenho mais a ver com esses cadáveres do que com meus colegas de turma” – algo que o espectador já havia intuído claramente.

É preciso, portanto, fazer vista grossa para o didatismo a fim de apreciar o que o filme tem de bom. O genocídio da juventude negra é um tema incontornável, aqui tratado com certa originalidade a partir da relação especular entre vivos e mortos. Os quesitos técnicos contam a favor, assim como a ótima performance do elenco, onde comparecem em pontas-homenagem  Léa Garcia, Zezé Motta, Lázaro Ramos. Aílton Graça e Rocco Pitanga. A fortíssima cena final é uma das melhores já criadas sobre o luto negro no Brasil.

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