Mito e lição yanomami

A ÚLTIMA FLORESTA no Festival de Berlim

Numa cena de A Última Floresta, o xamã Davi Kopenawa faz palestra num auditório da Universidade de Harvard sobre o mundo que está “na outra margem”: o mundo dos yanomami, que os brancos desconhecem, mas que ajudaram a destruir com doenças e com a mania de transformar a floresta em mercadoria. Em 2015, ele já havia falado para o mundo através do antropólogo francês Bruce Albert, colaboração que resultou no livro A Queda do Céu.

O novo filme de Luiz Bolognesi, que estreou ontem (3/3) na seção Panorama do Festival de Berlim, pode ser visto como mais um passo do líder yanomami na direção de ensinar os não índios a sobreviver. Agora pelo cinema, assinando o roteiro junto com o diretor.

Em A Última Floresta, Davi volta a expor a situação do seu povo, ameaçada pela invasão do garimpo, que contamina as águas com mercúrio. Pela tradição yanomami, o minério não deve ser extraído da terra, sob pena de libertar a fumaça da doença. É uma concepção que se combina com a dos Guarani, para os quais o desmatamento libera o mesmo tipo de fumaça daninha. Em 2020, essa catástrofe assumiu a forma da Covid-19, que vem afetando seriamente as populações indígenas. Ao fim do filme, letreiros denunciam o atual (des)governo brasileiro pelo descaso com os índios e as tentativas de legalizar a invasão de suas terras pelos garimpeiros.

Numa cena que parece encenada, mas o diretor garante que foi real, os indígenas, pintados de preto com tinta de jenipapo, afugentam com uma flechada alguns garimpeiros que rondavam por suas terras. Em outro momento, um dos jovens da aldeia encontra na selva um índio cooptado pelos garimpeiros e passa a cogitar de seguir o mesmo caminho.

Mas ninguém pense que este é apenas mais um documentário de denúncia. Bolognesi e Kopenawa, em estreita colaboração com o povo da Aldeia Watoriki (Amazonas), criaram uma bonita fabulação de mitos fundadores dos yanomami. Três belos jovens encenam o surgimento da primeira mulher, Thuëyoma, pescada nas águas de um rio por Omama. Yoasi, irmão ciumento de Omama, faz sexo com Thuëyoma e deflagra não só a ruptura fraterna, como também a morte e todos os males que afligem os homens.

O olhar da câmera para a aldeia é próximo do encantamento. Imagens cuidadosamente compostas e iluminadas realçam a beleza dos rostos, dos adornos, das pinturas corporais e da grande oca circular completamente envolvida pela floresta. Flertando um pouco com o etnográfico, o filme registra um ritual xamânico, precedido por farta aspiração de yãkoana, pó alucinógeno que induz ao transe.

A Última Floresta combina diferentes registros com naturalidade e em evidente harmonia com os parceiros indígenas. Demonstração de respeito e admiração por quem, afinal, já estava aqui 500 anos antes desse país existir.

Leiam também a matéria de Léa Maria Aarão Reis sobre o filme na Carta Maior.

 

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