Mostra virtual resgata vídeos de Joel Zito Araújo dos anos 1980 e 1990. Em pauta, a questão racial e os movimentos populares.
Uma mostra virtual, com retransmissão na TV dos Trabalhadores (TVT), vai resgatar uma parte da obra de Joel Zito Araújo que pouca gente conhece. Ele mesmo confessa que havia esquecido aqueles vídeos rodados entre 1987 e 1997: “Mais do que abandonados em um canto da memória, e até fisicamente também abandonados, eles estavam literalmente esquecidos, tanto que me surpreendi ao revê-los agora”, afirma o cineasta. “Redescobri personagens que entrevistei, histórias que desenvolvi, parcerias que fiz, pessoas com quem trabalhei, as minhas escolhas e experiências narrativas, e os desafios que vivi neste período que foi de intensa formação”.
Antes de realizar filmes essenciais para uma reflexão sobre a participação dos negros na vida brasileira, como a ficção Filhas do Vento e os documentários A Negação do Brasil e Raça, Joel Zito passou dez anos criando vídeos junto a movimentos populares, sindicatos e à TVT. Uma fase que, de alguma maneira, se assemelha à que Eduardo Coutinho viveu no Centro de Criação da Imagem Popular (Cecip) fazendo documentários sociais entre a revelação de Cabra Marcado para Morrer e o revival cinematográfico de Santo Forte.
A programação compreende um total de nove vídeos de curta e média metragens, além de dois programas especiais, quatro debates e uma masterclass de encerramento com Joel Zito. Os debates serão mediados pelo crítico Juliano Gomes, também editor do catálogo da mostra. Tudo pode ser acessado no site do evento. Os vídeos estarão disponíveis somente por dez dias.
É interessante testemunhar o processo de formação desse importante cineasta, sempre ligado nas questões da identidade negra e das lutas populares. Ele se experimentou em diversos formatos narrativos, característica que continua definindo sua obra até hoje. Os longas Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado e Meu Amigo Fela atestam essa procura permanente da construção mais justa ao seu objeto.
O mais antigo dos trabalhos exibidos na mostra é o docudrama Nossos Bravos, de 1987. Enquanto preparam uma greve geral, jovens sindicalistas visitam o velho guerreiro Ângelo (Dionísio Azevedo) e sua mulher (Lélia Abramo), imigrantes com histórico de lutas no operariado. Eles relembram a gênese da classe operária no Brasil, as origens do sindicalismo nas águas do anarquismo italiano e as primeiras greves. Se a encenação ainda patina no ritmo e no didatismo, o material de arquivo das primeiras décadas do século XX é uma preciosidade.
Em Alma Negra da Cidade (1991), Joel Zito colheu depoimentos de artistas, escritores, uma modelo, uma historiadora e duas mães de santo de São Paulo com coisas relevantes a dizer sobre racismo, afirmação, “orixalidade” e arte. Os únicos conhecidos, para mim, foram o compositor Geraldo Filme e o rapper Thayde. Daí a importância de apresentar tantas figuras que fazem a “alma negra” da Pauliceia sem que a mídia acendesse seus holofotes sobre elas.
Também na capital paulista foi gravado o vídeo São Paulo Abraça Mandela, registro da visita de Nelson e Winnie Mandela em agosto de 1991. Foi oportunidade para políticos e representantes do Movimento Negro não só festejarem a presença do herói sul-africano, como também reafirmarem posições contra o racismo brasileiro dissimulado sob a capa da democracia racial. Dá gosto ver Luiza Erundina fazendo as honras da casa como prefeita de São Paulo.
O vídeo mais recente é A Exceção e a Regra (1997), uma amostragem de como a Justiça brasileira tratava as denúncias de racismo. A regra era desmontar os argumentos das vítimas e passar a mão na cabeça dos infratores. O filme cita dois casos em que mulheres denunciaram discriminação em empregos e tiveram suas causas perdidas nos tribunais. A exceção foi o processo que o catarinense Vicente do Espírito Santo moveu persistentemente contra a Eletrosul por tê-lo demitido para “limpar o departamento” e “se livrar do negão”. Vicente percorreu instâncias, fez recursos e, com a ajuda do Movimento Negro e do sindicato, saiu finalmente vencedor.
No vídeo, Joel Zito trabalha com igual afinco, ouvindo todas as partes envolvidas e deixando clara a dificuldade para se criminalizar o racismo no Brasil. Basta ver como altas autoridades do atual governo, a começar pelo verme do Planalto, cometem crimes dessa natureza em total impunidade.
Outros títulos da mostra abordam moradores de rua, memórias das lutas trabalhistas e feministas dos anos 1930, condições da mulher negra nos anos 1990 e outros aspectos do racismo na sociedade e na mídia brasileiras. Ali estão as bases de uma obra que depois iria florescer em longas incontornáveis. O próximo já vem por aí. A comédia dramática O Pai da Rita conta uma disputa de paternidade entre dois sambistas e velhos amigos.
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