Relações exteriores

A referência a contos de fadas não poderia ser mais adequada às tantas histórias de fantasia, gratificação e terror que fazem a teia do turismo sexual no Brasil. Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado nos dá um painel expressivo desse intercâmbio de ilusões, degradação e abismos culturais, mas também alguns exemplos de final mais ou menos feliz.

Na ponte entre Roma, o Nordeste brasileiro e Berlim, Joel Zito Araújo encontrou pessoas transbordantes de sinceridade, sejam italianos e alemães encantados pela disponibilidade e até o caráter “econômico” da mulher brasileira, sejam baianas e cearenses fascinadas pela perspectiva de ter um gringo que as retire “dessa vida” nem que seja por uns poucos dias de pseudo-casamento.

Alguns casos tocam o horror, como o de Ana Madonna, barbaramente torturada numa espelunca do Suriname, ou da menor que entrava em motéis de Fortaleza escondida no porta-malas de turistas estrangeiros. Outros casos beiram a tragicomédia, como a baiana fogosa que, decepcionada com as cobertas separadas e a perda de interesse sexual do marido alemão, ganhou como consolo um colete de água quente.

Joel Zito é ótimo entrevistador, incisivo e delicado ao mesmo tempo. Seu foco de interesse vai da questão racial (ele é autor do também ótimo A Negação do Brasil) aos dilemas afetivos, diferenças de comportamento e à dimensão política desse aspecto das nossas, digamos, relações internacionais. Se a qualidade dos depoimentos é excelente, ficam ainda melhores no quadro de situações que o diretor conseguiu armar diante da câmera. Fica nítida a compreensão de que a temperatura dramática se eleva quando se tem diversos personagens ao mesmo tempo dentro do quadro.

Os exemplos se multiplicam: a adolescente prostituta e miserável que se enrosca na mãe passiva como um animal assustado; o empresário alemão confraternizando com sua “família” de vistosas mulatas brasileiras (foto no alto); o casal germano-brasileiro que desfia seus lucros e perdas para Joel Zito; os divertidos relatos de um cabeleireiro e um travesti durante uma sessão de penteado.

O filme não usa nenhum discurso que possa reduzir a complexidade do assunto. A senadora Patricia Saboya chega a comover-se enquanto fala de sua luta pela erradicação do turismo sexual, mas boa parte das mulheres envolvidas coloca a questão em termos de carência. Todo tipo de carência: emocional, financeira, de informação. Nesse sentido, não há muita diferença entre as que procuram ser felizes para sempre ao lado de um príncipe encantado e as que entregam o corpo em troca do próximo prato de comida. Quem não entender isso que atire a primeira pedra.

(Texto publicado originalmente no DocBlog durante o Festival do Rio de 2008)  

3 comentários sobre “Relações exteriores

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