Dominação, submissão, fabulação

VIL, MÁ no streaming

Existe um tipo de documentário calcado no depoimento direto de uma única pessoa para uma câmera que permanece quase todo o tempo imóvel. Assim foram, por exemplo, Uma Vida Alemã, com a secretária de Goebbels, e Memórias de uma Chinesa, com uma mulher comum. Nesses casos, o dispositivo minimalista se presta a assegurar uma impressão de veracidade para a personagem que relata memórias de sua vida.

Gustavo Vinagre vem subvertendo essa norma. Em Lembro Mais dos Corvos, a atriz e diretora trans Julia Katharine fazia uma jogo de cena entre verdade vivida e fabulações criadas a partir de sua intensa cinefilia. Vil, Má aprofunda essa fenda ao registrar, em 2014, as (pseudo?)lembranças de uma escritora especializada em literatura sadomasoquista, então aos 74 anos.

Ela faz dois relatos diferentes no filme. No primeiro, apresenta-se como Wilma Azevedo, pseudônimo da jornalista e escritora que colaborou com várias revistas eróticas dos anos 1970 e 1980. Wilma conta que se inspirava nas cartas que recebia dos fãs com as mais escabrosas fantasias de submissão, podolatria, coprofagia, supliciamentos sexuais e outros mimos. Já aqui os deslizamentos entre ficção e realidade se multiplicam. Wilma descreve como aventuras suas muitas cenas que talvez se passassem somente na imaginação sua e dos seus leitores. Ao mesmo tempo, uma série de fotos antigas atestam não só a jovem Wilma em atividades de dominatrix, como outras pessoas interagindo com ela no lusco-fusco entre documento e encenação.

No segundo relato, ela assume sua identidade real de Edivina Azevedo Ribeiro, mulher casada com filhos, nascida em cidade distinta da citada por Wilma. Logo, porém, percebemos que os fatos narrados por Edivina comungam da mesma excentricidade dos anteriores. Há contrapartidas exatas para as referências ao primeiro orgasmo e ao perigo de certos encontros sexuais, entre outras. Wilma tem traços de realidade, assim como Edivina tem sinais de ficção.

Mais uma camada de fabulação se acrescenta com a presença da atriz alemã Jules Elting (Teatro Oficina, O Ornitologista, Carro Rei), que lê trechos de cartas e textos de Wilma, serve discretamente de “escrava” para ela e posa com seus apetrechos sadomasô. Consta que Jules se preparava para viver Edivina/Wilma num futuro filme. Por sua vez, a sala em que se dá a conversa tem três imagens de mulher (um quadro, um manequim e uma estatueta de Vênus).

Mantendo-se somente como um olho que vê e um ouvido que ouve, Gustavo Vinagre deixa todo o espaço para a personagem flutuar em sua deriva. Ela impressiona pela maneira prosaica com que descreve suas façanhas, quase como uma tia carola que de repente descobríssemos ser uma devassa total. Por vezes ela reage com espanto quase convincente às extravagâncias que vai contando, como se estivesse falando de outra pessoa.

Pode-se dizer que Vil, Má incorpora em sua proposta de documentário a mesma ambivalência que existe na prática das fantasias entre dominados e dominadores. Um jogo de máscaras que revela e esconde ao mesmo tempo. Talvez seja essa a maneira mais honesta de retratar uma criadora de simulações.

>> Vil, Má está na plataforma Mubi.

Uma boa matéria jornalística com Edivina aos 80 anos aqui.

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