Maçãs douradas e sushis de pétalas de rosa

slowA bucólica Pirenópolis, em Goiás, está abrindo hoje a quarta edição do Slow Filme – Festival Internacional de Cinema e Alimentação. Estive lá na segunda edição e sei que o tamanho do evento coincide menos com a pompa do nome do que com o porte modesto da antiga Goiás Velho. Mas o que se impõe na organização da produtora Objeto Sim e na curadoria do crítico Sérgio Moriconi não é o tamanho, mas a qualidade e a diversidade. Veja o site.

Patrocinado como sempre pela Petrobras e realizado pela prefeitura da cidade, o 4º Slow Filme traz 16 títulos, entre curtas e longas, além de atividades paralelas que incluem refeições e degustações. A proposta é difundir obras e ideias que contribuam para “um mundo mais justo, mais digno, mais saudável”, conforme as palavras da curadoria. Entre os filmes a serem exibidos está o documentário Slow Food Story, de Stefano Sardo, que conta a história do movimento que inovou na gastronomia mundial. O filme estreou no último Festival de Berlim.

Tomo dois exemplos – que já conheço – do tipo de trabalho que interessa ao Slow Filme. Estão na programação deste ano os documentários O Cru e o Cozido (Das Rohe und das Gekochte), de Monika Treut, e Jaffa, a Laranja Mecânica (tradução traiçoeira do original Jaffa, the Orange’s Clockwork), de Eyal Sivan.

O primeiro é uma típica peça de gastroturismo através de várias regiões de Taiwan. A diretora alemã Monika Treut, conhecida por seus filmes sobre feminismo, gênero e sexualidade, parece aqui tirar férias num país onde já realizou três docs (ela também fez um sobre a ativista brasileira Yvonne Bezerra de Mello). Monika visita restaurantes trendy, a cozinha vegetariana de um mosteiro budista, banquetes de grupos étnicos regionais, agricultores da produção orgânica e especialistas em dumplings. Procura abordar a origem dos ingredientes, o modo de preparo e a forma de comer a variada culinária taiwanesa – que inclui delicatessen como sushis de pétalas de rosa e sopa de pé de porco.

Esse é o tipo de filme que faz um simples inventário de certa culinária, num modelo característico de programa de TV. Tudo é apresentado “para a câmera”, de maneira bastante superficial, num registro de visita simpática e interessada sobretudo no exotismo e na pluralidade.

Bem diferente é a abordagem da famosa laranja de Jaffa pelo diretor israelense Eyal Sivan, autor do magnífico O Especialista, sobre o julgamento de Adolf Eichmann. As laranjas produzidas na antiga Palestina, incluindo a região hoje ocupada por Israel, ganharam fama mundial como as “maçãs douradas” do Oriente. O diretor convoca pensadores, estudiosos, ex-lavradores e comerciantes para analisarem as imagens de arquivo que vêm do início do século passado. Daí surge uma história onde se misturam disputas políticas, propagandísticas e mitológicas em torno da fruta.

A reputação da laranja original de Jaffa (aldeia hoje anexada a Tel-Aviv) teria sido salva ou sequestrada por Israel? Terão os antigos laranjais palestinos servido à “confirmação” da Bíblia pela ideologia religiosa? Teria sido a “maçã dourada” apropriada pela ideologia sionista num projeto de colonização inspirado na estética soviética? Essas são questões que o filme desdobra pelo eficiente mecanismo de voltar às imagens do passado. Mostra, assim, como um item gastronômico pode iluminar e desmitificar todo um projeto ideológico criado para forjar nacionalidade. É quando a gente entende melhor o alcance de um evento como o Slow Filme.  

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