Festival do Rio 2015

Acompanhe aqui as atualizações diárias de resenhas do Festival do Rio

 

TE PROMETO ANARQUIA

A Cinemateca do MAM vai exibir hoje (quarta), às 19 horas, o filme vencedor do Prêmio Fipresci. Que os críticos-jurados Christian Petterman, Flávia Guerra e Ricardo Cota me perdoem, mas estou longe de compartilhar do seu entusiasmo por essa mescla de thriller criminal e romance gay rodado quase sempre do ponto de vista de um skate. Esse é o passatempo preferido de Miguel, rapaz da classe média da Cidade do México, e de seu namorado Johnny, filho da empregada e refinado cheirador de pedra. Eles ganham alguns trocados doando sangue clandestinamente. Seguindo o figurino do gênero, entram numa fria quando tentam dar um golpe grande arregimentando outros doadores para atender a traficantes feridos.

O que parece estar em jogo é a atração da classe média pela marginalidade, expressa física e espiritualmente pela convivência dos rapazes. No entanto, as questões são colocadas de uma maneira tão vaga e descosturada que é preciso muita boa vontade para ligar as pontas. Os jovens são caracterizados como infantis e inconsequentes no intuito de fazer um retrato de geração que fica somente no rascunho. A mensagem política sobre a diferença de classes também soa bastante óbvia ao final, sem falar na possível insinuação de um nexo entre homossexualidade e criminalidade.

Cabe citar uma sequência rodada nos célebres Estúdios Churubusco, que poderia render um interessante contraponto com a produção rueira e independente do filme. Pena que acaba servindo somente para ambientar uma das reviravoltas mais discrepantes do roteiro.

O diretor Julio Hernández Cordón, de origem guatemalteca, tem experiência com documentários e, talvez por conta disso, eventualmente constrói uma atmosfera realista convincente com participação de atores amadores. Mas, como narrativa ficcional, Te Prometo Anarquia (título enigmático) acumula elipses aleatórias e diálogos sem inspiração. Com a agravante de usar canções como muleta para “aquecer” o clima a cada 15 minutos em média, um clichê insuportável do cinema que se quer contemporâneo.


A RUA DA AMARGURA

Arturo Ripstein nunca acaricia seus espectadores. Ao contrário, os põe à prova com um estranho código, que ou se aceita ou se rejeita. Suas imagens são duras, incômodas, assim como seus temas e a vida de seus personagens. Em A Rua da Amargura, é preciso dar-se um tempo para compreender o humor cruel e o sentido de paródia proveniente das situações expostas num tom que pode facilmente ser confundido com a exploração.

Baseado num caso verídico e rodado em soturno preto e branco, o filme se passa no submundo da Cidade do México, numa espécie de noite eterna, em que as criaturas se esgueiram como ratos nas vielas de um porão. Dois anões ganham a vida como “sombras” de dois praticantes de luta livre de estatura normal. Uma noite, em seguida a uma luta, eles saem com duas prostitutas num programa que terá final trágico. As mulheres, por sua vez, têm seus dramas particulares. Uma vive com um homem idoso que se fantasia com as roupas dela para transar com rapazes. A outra divide a casa com sua velha mãe, uma mendiga acometida de demência.

Se a miséria profunda dos personagens faz lembrar o Buñuel de Os Esquecidos, as relações entre eles se situam na esfera do tradicional melodrama mexicano. São relações de crueldade, frequentemente marcadas pelo dinheiro e pelo sentimento de posse, mas que subitamente podem tomar a forma de uma inesperada ternura, pois, como diz alguém, “até as piores raivas têm fim”. O melodrama é levado a extremos que tocam o patético, de onde nasce um humor desconcertante e amargo. Isso, porém, não impede os vislumbres de humanidade que estão, por exemplo, na aliança de amizade das duas prostitutas ou na mescla de zombaria e carinho que o senso comum dispensa à figura dos “disminuídos” (os anões).

Os elaborados planos-sequência de Ripstein nos colocam no centro desse pequeno mundo úmido e escuro, tão presos quanto aqueles seres tristes que nada podem fazer contra o destino, sempre um vencedor implacável.

P.S. Torço para que as versões a serem exibidas no Lagoon e no São Luiz não sejam tão “lavadas” e cortadas no topo como a que vi no Estação Net Botafogo.


EM TRÂNSITO

O mestre do documentário Albert Maysles (1926-2015) concluiu sua obra com esse pequeno filme sobre passageiros e tripulantes da última grande linha ferroviária americana. O trem Empire Builder atravessa o país de uma costa à outra, numa viagem que dura três dias. É o suficiente para as pessoas interagirem, tomarem porres, cantarem e tocarem, novas amizades se formarem… E um documentarista poder captar um microcosmo do país em movimento.

Maysles combina duas formas de registro: a observação de conversas alheias e o depoimento direto para sua câmera. Ao deslocamento constante do veículo através de pradarias, campos de petróleo, cidades e montanhas corresponde a transição pessoal dos passageiros. Temos a moça grávida prestes a dar à luz, o rapaz afrodescendente emocionado por conhecer alguém que conheceu Martin Luther King, a mãe solteira com seus quatro filhos de pais diferentes, o garoto que segue ao encontro da namorada que não vê há muito tempo, o jovem que vai tentar a vida como petroleiro, a menina que largou a família desintegrada para começar tudo do zero. E outros mais.

Essa ideia de uma América em trânsito, seja atrás de emprego, de amor ou de família, tem algo de muito básico, que pode soar até banal ou mesmo um tanto depressivo. Por isso talvez permaneça por mais tempo na memória do espectador do Festival do Rio o penúltimo filme de Maysles, Iris, sobre a vital e esfuziante Iris Apfel (comentado aqui por Patricia Rebello). De qualquer forma, o seu derradeiro filme-viagem fica como testemunho de um atento radar de humanidades que não descansou até a parada final.


TUDO VAI FICAR BEM

Autor de alguns belíssimos documentários nos últimos 15 anos, Wim Wenders parece ter perdido a varinha mágica da ficção no mesmo período. Não vi Palermo Shooting (2008), mas de todos os demais longas seus, Tudo Vai Ficar Bem é para mim o mais fraco, talvez o pior de toda a sua carreira. Trabalhando com uma história do norueguês Bjørn Olaf Johannessen, Wenders procura em vão um caminho minimalista e interiorizado para tornar o roteiro minimamente interessante.

Um acidente na estrada, uma criança morta e vários personagens assombrados pela culpa em busca de consolo. O canastrão James Franco, com ar de quem fumou um baseado cujo efeito dura o filme inteiro, capricha no franzir do cenho para interpretar o atropelador, um escritor em crise criativa (quem ainda aguenta isso?) e amorosa. Charlotte Gainsbourgh, como a mater dolorosa, fica em cena por pouco mais de 15 minutos no total e envelhece 13 anos sem qualquer alteração física, assim como os demais personagens adultos. Os outros coadjuvantes têm a mesma importância de um peso de papel na mesa do escritor.

Não duvido que Wenders, em melhor fase, conseguisse extrair leite dessa pedra mediante um estilo pessoal e um engajamento expressivo das locações, da fotografia, etc. Afinal, Paris, Texas era também um simplérrima história de culpa familiar. O problema é que as cenas se sucedem, numa estrutura fragmentada, sem que nada impregne a tela. O filme é apenas macambúzio e artificialmente desdramatizado, um rascunho do que poderia ser a rede de relações capaz de se estabelecer entre pessoas ligadas por uma tragédia.

Quando o clima de thriller se instala, perto do final, é somente uma promessa falsa, que logo vai redundar num desfecho conciliador e tão débil quanto todo o resto. A citação de Luz em Agosto, de Faulkner, soa tão gratuita quanto a capa de um dos livros do roteirista, Nowhere Man, autografada pelo personagem de Franco. O filme foi rodado em 3D, o que talvez lhe confira algum relevo, ao menos no aspecto visual.


10 ANOS, DIVORCIADA

No início desse raro longa-metragem do Iêmen, a pequena Nojoom, de 10 anos de idade, chega sozinha a um tribunal e, diante do juiz, pede para se divorciar. A partir daí, o filme da diretora Khadija Al-Salami (de quem o Festival do Rio de 2007 exibiu Amina) recobra a história pregressa da menina, vendida pelo pai em sua aldeia natal a um marido adulto, num dos tantos casamentos infantis que assolam a sociedade tribal iemenita. Nojoom sequer participou da cerimônia de casamento, pois tudo fora acertado entre o pai, o futuro marido e um corrupto juiz da aldeia. Foi estuprada na noite de núpcias, espancada e escravizada no trabalho. Quando tem a chance de fugir, corre para o tribunal.

Mais adiante, o enredo toma rumos inesperados envolvendo a família de Nojoom e a Justiça. O roteiro, um tanto abrupto no seu desenvolvimento, avança na exposição das razões profundas do casamento da garota. Sua irmã mais velha havia sido violentada antes de casar, o que arruinou a família. Na concepção de honra tribal, era preciso casar a menor antes que o mesmo lhe acontecesse, com a vantagem financeira advinda do dote. Ou seja, tratava-se de institucionalizar o estupro, algo considerado normal na zona rural do país.

A história, baseada em fatos verídicos, caminha para um desfecho suave e reconfortante, que parece querer compensar o espectador pela dureza do que viu até ali. A vitória das leis civis contra o código tribal soa um tanto fácil demais. Tecnicamente, o filme é bem realizado, com uma fotografia que realça a bela rusticidade das montanhas iemenitas e a perturbadora fotogenia da capital, Sanaa, a cidade de adobe.


OS 33

De um lado, há a realidade do acontecimento, que o mundo acompanhou há exatos cinco anos: os 33 trabalhadores que ficaram presos durante 68 dias no refúgio de uma mina no Chile antes de serem resgatados, todos com vida e saúde. De outro, há a formatação hollywoodiana que constantemente sabota o teor de realidade do que é mostrado. Os 33 é um cabo-de-guerra entre essas duas forças opostas: o fato e o formato, o Chile e o clichê.

É sintomático que nenhum dos quatro heróis seja interpetado por um ator chileno. O herói mineiro é defendido pelo espanhol Antonio Banderas; o herói político, pelo brasileiro Rodrigo Santoro; o herói técnico, pelo irlandês Gabriel Byrne; e a heroína popular, pela francesa Juliette Binoche. O primeiro contato que temos com os mineiros é ao som de Jailhouse Rock cantado por um deles, apelidado de “Elvis”. Logo em seguida, temos que acostumar os ouvidos a operários, seus familiares e políticos chilenos falando em inglês. Ou seja, é muita sabotagem.

Este é o preço a pagar por uma produção de certa envergadura, que consegue recriar de maneira bastante sugestiva o interior da imensa Mina San José. Se as sequências do desabamento e da corrida para o refúgio sucumbem ao caráter espetaculoso do filme-catástrofe, as cenas do resgate chegam bem perto de uma emoção genuína. Entre uma ponta e outra da cronologia, o filme se reparte entre o cotidiano dos mineiros debaixo do solo, com seus conflitos e dilemas de sobrevivência, a angústia das famílias e os trâmites políticos e tecnológicos do resgate.

A diretora mexicana Patricia Riggen adota uma encenação tipicamente americana, na qual os atores mais parecem mimetizar chavões de interpretação do que internalizar devidamente seus personagens. E isso inclui La Binoche, como uma Maria do povo, e o nosso Santoro, como o Ministro da Mineração, todos bastante unidimensionais.

A construção da liderança de Mario Sepúlveda entre os mineiros soterrados é mostrada sem qualquer sutileza, como se chegasse por um milagre de dramaturgia. Outro milagre se dá na “última ceia” dos mineiros, quando o docudrama se permite uma licença poética para materializar a imaginação dos homens famintos recebendo a visita de suas amadas com quitutes deliciosos.


NÃO É UM FILME CASEIRO

No Home Movie é, sim, um filme caseiro. Chantal Akerman filma o apartamento de sua mãe em Bruxelas e algumas conversas com ela, pessoalmente ou por Skype. As duas falam do cotidiano, do passado da família (Natalia era uma sobrevivente de Auschwitz), das frequentes viagens da filha pelo mundo, de comida, de saúde, etc. Há um profundo carinho nessas conversações, apesar da intermediação da câmera ou da webcam. Há também o desejo recíproco de aproveitar os breves momentos de convivência e os raros momentos de bom-humor que Chantal dizia ter ultimamente.

De um certo ponto em diante, a saúde de Natalia se deteriora, a voz torna-se pouco compreensível, a lucidez se esvaindo com a proximidade da morte. Estamos, afinal, assistindo ao fim de Natalia, mas o que se revela agora naquelas imagens é a iminência do fim de Chantal, que cometeria suicídio no último dia 5, enquanto o filme fazia sua première nos EUA. Daí ser este um opus profundamente perturbador em sua carreira.

Embora na maior parte do tempo o filme pareça se construir à revelia da diretora (câmeras desassistidas ou rodando enquanto Chantal fala ao telefone de outro lugar), os momentos em que ela conduz o aparelho são cheios de uma estranha pulsão. Ora ela vagueia pelo apartamento na escuridão com o som de choro se fazendo ouvir, ora fita janelas cobertas por cortinas ou avança desabalada rumo à varanda como se fosse se atirar. Algumas imagens sugestivas de dor e vazio foram tomadas em desertos, terrenos pedregosos, uma árvore surrada pelo vento. São claras representações de uma angústia que tragicamente se faz agora conhecer.

É sabido que a morte da mãe agravou bastante a depressão que já abatia Chantal. Segundo Gilles Jacob, ela não aguentaria viver nem mais um dia quando resolveu suicidar-se. Se já no seu primeiro curta, Saute ma Ville (1968, aqui no Youtube), ela própria terminava o filme colocando a cabeça no bico do gás e fazendo a casa explodir, No Home Movie vai ficar como a última caminhada da cineasta rumo a seu inferno pessoal, minuciosamente encenado ao longo de toda a sua obra.


MIA MADRE

A carreira recente de Nanni Moretti tem sido irregular, em que pese a condescendência da crítica dominante, sempre pronta a reconhecer-lhe méritos mesmo quando não merece. Mia Madre, festejado em Cannes, pareceu-me um tiro n’água em vários aspectos. Quanto à relação sempre importante entre os filmes e a vida de Moretti, este foi inspirado na perda de sua mãe, há quatro ou cinco anos. Ele usou uma intermediação para falar da sua dor, colocando a atriz Margherita Buy como protagonista, a filha que mais se deixa abater pela proximidade da morte da mãe, ficando ele com o papel discreto do irmão mais racional.

Margherita é, portanto, uma cineasta em crise de tudo. Está rodando um filme sobre a ocupação de uma fábrica pelos operários e recebe um espaventoso ator americano (John Turturro) para fazer o papel de um empresário. A recomendação brechtiana que ela faz aos seus atores (“não entre no personagem, fique ao lado dele”) é algo que ela própria não consegue botar em prática na vida. Explode de estresse e chora por tudo. Apesar da intensidade colocada pela atriz, é uma personagem unidimensional e não evolutiva, que repete o mesmo padrão no filme inteiro.

Moretti procura sintonizar o espectador com as derivas de Margherita através de lembranças, sonhos, devaneios e pequenas alucinações, mas tudo parece vago e ineficaz do ponto de vista emocional, que é claramente almejado. O filme se divide em duas correntes paralelas: o drama dos irmãos perante a inevitabilidade da perda materna e a comédia confiada exclusivamente ao histrionismo de Turturro na pele do ator fanfarrão, vaidoso e de memória deficiente. As duas partes não dialogam nem se complementam. São como água e vinho numa ceia um tanto desenxabida.


FRANCOFONIA

Depois de usar um museu, o Hermitage, para falar da História em Arca Russa, Alexander Sokurov usa a História para falar de um museu, o Louvre, em Francofonia. Em tudo, esse filme é um contraponto daquele. Em vez de um traveling sem cortes pelas dependências de um prédio, Sokurov faz um passeio cheio de cortes pelas ideias a respeito da História, das guerras e do destino da arte.

O formato é o do filme-ensaio tão praticado por Godard, Kluge, Chris Marker, Raul Ruiz e Agnès Varda. Uma série de materiais heterogêneos – imagens de arquivo, encenações, fantasias, cenas autorreflexivas – são enfeixados pela narração subjetiva do próprio diretor, em que as perguntas são tão numerosas quanto as afirmações. Francofonia é uma reflexão pessoal, em que o próprio Sokurov aparece ora manuseando fotos de época, ora falando pelo Skype com um certo capitão de navio que conduz obras de arte por mares turbulentos, ora conversando diretamente com seus personagens. Num dado momento, é Napoleão Bonaparte, sob cuja égide o Louvre cresceu, quem puxa Sokurov pelo braço para mostrar a si mesmo num quadro e, diante da Monalisa, exclama “C’est moi!”. Em outra passagem, a voz do diretor relata a dois personagens como seria o futuro deles.

O foco central é a ocupação da França pelos nazistas em 1940, que gerou imagens assombrosas de uma Paris vazia. Sokurov quer contar a história da tácita cumplicidade entre o diretor do Louvre na época, Jacques Jaujard, e o alemão Franz Wolff-Metternich, encarregado de inventariar as obras que haviam sido retiradas do museu para serem resguardadas em castelos nas redondezas de Paris. Graças a essa dupla, o acervo do Louvre não foi expatriado para a Alemanha. A decisão nazista de poupar Paris, em função do colaboracionismo, contrasta com a destruição promovida na antiga Leningrado, que resistia. As obras do Hermitage só foram salvas porque também foram escondidas a tempo.

Sokurov relaciona esses fatos por meio de uma narração meditativa e quase ininterrupta. Ele transita com grande liberdade entre os diversos blocos de ideias. Os tempos de Napoleão, da II Guerra e da atualidade se projetam uns nos outros, entre filmes antigos e voos de drone sobre a Paris de hoje. A reconstituição do passado com atores (incluindo a Marianne símbolo da República francesa) aparece como um filme em processo, com batida de claquetes e a banda sonora correndo na lateral da imagem. Particularmente bonito é o trecho que mostra como o Louvre conta a sua própria história através de quadros.

Francofonia é um belo e criativo elogio à cultura europeia (o que seria das cidades sem seus museus?) e dos homens de consciência que pouparam as obras de arte da barbárie.


O CONTO DOS CONTOS

Esqueça Disney. Esqueça mesmo recriações hollywoodinas recentes de fábulas como Caminhos da Floresta e Malévola. O Conto dos Contos, embora falado em inglês com atores internacionais de ponta, não é para crianças pequenas nem grandes. Fica mais próximo de um bestiário medieval, sem pejo de soar cruel para idosos e feios como nos velhíssimos tempos. O filme de Matteo Garrone (Gomorra, Reality) é livremente baseado no livro homônimo, também conhecido como Il Pentamerone, de Giambattista Basile (século XVII), uma espécie de pai de todos os contos de fadas. Intercala histórias de três reinos comandados por soberanos cujos caprichos vão provocar uma série de tragédias sangrentas.

Uma princesa condenada a se casar com um ogro, uma mulher idosa que inadvertidamente cai nas graças de um rei libertino, uma rainha obcecada por ter um filho e outro rei devotado à criação de um inseto que não para de crescer – eis algumas das estranhezas que Garrone encena mais com a seriedade de um nórdico do que com a expansividade de um italiano. A direção de arte é magnífica, os figurinos estão no limite da sátira e a envolvente trilha sonora traz um Alexandre Desplat mais inspirado em Nino Rota do que nunca. A lembrança de Fellini vem ao caso por uma distante semelhança com o seu Satyricon, apenas um tanto menos exuberante e mais homogêneo e circunspecto.


WALTER LIMA JR. e os 50 anos de MENINO DE ENGENHO

Neste domingo, 11/10, às 18h, no Instituto Moreira Salles, o Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro vai fazer uma exibição especial de Menino de Engenho, o clássico de Walter Lima Jr., que está completando 50 anos de seu lançamento. Na ocasião, Walter receberá uma homenagem como Personalidade Fipresci Latino-americana do ano. A Fipresci é a organização que congrega críticos de cinema do mundo inteiro.

A respeito do assunto, eu escrevi para o catálogo do Festival do Rio o seguinte texto, intitulado “Meio século de Brasil”:

Há 50 anos, quando surgiu Menino de Engenho, ninguém duvidou que estava despontando um cineasta com personalidade e dicção próprias, brasileiro até a medula. Uma brasilidade que se reflete na luz, nas paisagens, nas histórias e nos tipos humanos. Ainda assim, sua obra não se subjuga ao típico nem aos cânones de uma suposta identidade nacional. São filmes que se querem, antes de tudo, cinema.

Walter Lima Jr. foi cinéfilo-mirim, cineclubista, jornalista do setor policial e crítico de cinema antes de pisar pela primeira vez num set. Ativo assistente de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol, ele começava sua carreira sob a égide  do Cinema Novo. Mas qual não foi a surpresa de quantos viram a estreia de Menino de Engenho. As ousadias cinemanovistas eram balanceadas por um recorte clássico, influenciado por Humberto Mauro, o western americano e os dramas familiares de John Ford, com o quadro social condicionado aos personagens e uma visão nostálgica do velho mundo dos banguês. “É um lírico”, tentaram colar o rótulo em sua testa. Walter fingiu que aceitou, mas partiu logo para desmenti-lo com o tropicalista Brasil Ano 2000.

Assim seguiu sua carreira, desafiando expectativas de ocasião e tendências hegemônicas do cinema brasileiro. Do mal-estar político-existencial da ditadura (Na Boca da Noite) à embriaguez libertadora de A Lira do Delírio, do épico popular de Chico Rei à pulsão naturalista de A Ostra e o Vento, do intimismo romanesco de Inocência e O Monge e a Filha do Carrasco ao puramente afetuoso Os Desafinados, passando pelas ousadas combinações de documentário e ficção, o cinema de Walter Lima Jr. não cabe em rótulos nem se aprisiona em camisas-de-força autorais.

O país de Walter é um Brasil oblíquo – inocente e delirante ao mesmo tempo – que surge das entrelinhas de seus filmes, mesmo quando eles parecem se passar apenas no espaço mágico do cinema.


CAMPO GRANDE   

O novo filme de Sandra Kogut é mais um tijolinho na construção dramatúrgica que o cinema brasileiro vem fazendo das relações contemporâneas entre classes sociais. É bem verdade que a questão de classe é bastante secundária na relação que se estabelece entre Regina (Carla Ribas), dona de casa de classe média de Ipanema, e as duas crianças deixadas na portaria do seu prédio, netas de uma ex-empregada. Há a questão da maternidade vicária, que aproxima o filme de Central do Brasil. E há também a separação de Regina e o difícil momento vivido com a filha. É semelhante a situação das duas famílias, ambas passando por um processo de desagregação.

De qualquer forma, Campo Grande investe na dualidade Zona Sul-subúrbio como canal por onde passam as semelhanças e diferenças. É no trânsito entre esses dois polos que os personagens se observam mutuamente e põem à prova seus sentimentos e prioridades. Os vínculos tênues, mas incontornáveis entre patroa e empregada ficam patentes de maneira indireta através da prole da ex-empregada, que conserva na família de Regina uma referência.

A instabilidade de todos parece ecoar num Rio de Janeiro transformado em canteiro de obras, cenário cambiante onde uma moradia humilde pode desaparecer da noite para o dia, dando lugar a mais um empreendimento imobiliário. O uso criterioso da tela panorâmica realça a sensação de extravio vivida pelas crianças na Zona Sul e por Regina na Zona Oeste. Da mesma forma, o espectador se sente frequentemente compreendendo a ação através de frestas, fragmentos de conversas, imagens que parecem querer fugir ao nosso olhar.

A ausência de maniqueísmo e de resoluções melodramáticas é um dos grandes trunfos do filme. Os personagens estão mergulhados em suas questões próprias e, ao se cruzarem, não abrem mão delas em benefício de um projeto sentimental ou de algum tipo de redenção.

Sandra Kogut leva para o contexto urbano a sensibilidade com o elenco infantil já demonstrada em Mutum (por sinal, baseado numa novela de Guimarães Rosa chamada Campo Geral). Preparadas por Fátima Toledo, as crianças Ygor Manoel e Rayane do Amaral atuam no mais espontâneo naturalismo, sendo que Ygor comparece em quase todas as cenas, sempre com o tempo, o olhar e o tom de voz impecáveis. Na caracterização de personagens, faltou talvez um pouco mais de fidelidade à forma de agir do pessoal do subúrbio, normalmente mais expansivo do que está no filme.

Campo Grande é seco e suave, desprovido de extravagâncias visuais ou trilha sonora, mas com uma expressiva paisagem sonora da cidade. Duas canções sublinham momentos de intensa emotividade entre personagens, substituindo com muito ganho uma enxurrada de palavras inúteis. O essencialismo de Sandra Kogut faz um profundo bem.


EM JACKSON HEIGHTS

Não é a primeira vez que Frederick Wiseman troca suas habituais instituições por um bairro inteiro. Já fez isso, pelo menos, com Aspen e Belfast, Maine. Ao ligar suas câmeras e microfones no multiétnico bairro de Jackson Heights, no subúrbio nova-iorquino de Queens, ele trabalha em duas frentes.

Numa delas, recolhe vinhetas da vida nas ruas, praças, lojas e estabelecimentos. Assim é que visitamos aulas de dança do ventre, de orientações para taxistas imigrantes e alfabetização numa madrassa (escola muçulmana). Numa sinagoga, as orações de velhos judeus em memória das vítimas do Holocausto. Numa das principais avenidas, uma parada de orgulho gay e um protesto contra a discriminação de transexuais. Numa rodinha de tricô, um debate de idosas a respeito do cemitério local. Num bar, a festinha de aniversário de um benfeitor da comunidade.

Na outra frente, Wiseman é mais Wiseman ainda. Detém-se em discussões comunitárias sobre proteção de imigrantes, luta pelos direitos LGBT e defesa dos pequenos comerciantes contra a especulação imobiliária que avança sobre Jackson Heights. Imigração, sobrevivência e identidade são os temas mais candentes numa área que congrega 167 idiomas, mas onde os latinos parecem os mais ativos, ou pelo menos os que mais concentraram a atenção do documentarista. Wiseman tem um grande respeito pelo tempo de fala dos diversos oradores e não se furta a retomar assuntos já discutidos, o que pode gerar alguma impaciência em espectadores menos interessados nos assuntos ou no método do diretor.

Como outros filmes de Wiseman, esse é também uma exposição da democracia americana em pleno movimento. Fica evidente a participação das diversas comunidades na condução das pequenas e grandes questões do bairro, sobretudo ali, onde a liderança política é exercida por Daniel Dromm, vereador Democrata progressista que é também ativista gay.

Aspectos como a criminalidade e a situação dos imigrantes de origem árabe passam ao largo do escâner de Wiseman. Esta seria a pergunta que eu faria caso ele tivesse vindo ao Brasil e eu o encontrasse numa conversa depois da sessão.


SESSÃO WELLESIANA

Para quem não foi à sessão de raridades de Orson Welles quinta no CCBB, aqui vai um resumo do que foi apresentado:

– Um trailer de Soberba e quatro sequências cortadas pela RKO. Como os negativos originais foram destruídos, essas sequências foram reconstituídas nos anos 1990 com fotos da filmagem e diálogos interpretados por atores. Destacam-se as cenas finais, com a decadência dos Ambersons, opção bem mais sombria do que o final feliz providenciado pelos produtores.

– Numa espécie de palestra filmada nos anos 80, Welles diz mais ou menos assim: “O diretor desempenha muitos papéis no filme, inclusive o de ator. Mas o papel mais difícil é de ser o público, esse vácuo bocejante”.

– Num cinejornal intitulado “We Work Again”, de apoio às reformas do New Deal de Roosevelt, apresenta-se a cena final de uma montagem de Macbeth, dirigida por Welles, com atores negros, música afro e armas de fogo. Em vez da Escócia, a peça se passa no Haiti.

– A entrevista que Welles deu no dia seguinte ao tumulto causado por sua transmissão radiofônica da Guerra dos Mundos. Ele se desculpa formalmente diante da câmera e diz-se chocado com a reação dos ouvintes a seu programa de ficção. Mas justifica-se: “Toda apresentação artística tem que ser mais dramática do que a vida. Eu não queria que essa transmissão fosse menos dramática”.

– Num trecho de Epopeia da Alegria (Follow the Boys, 1944), feito pela Universal para elevar o moral das tropas americanas na II Guerra, Orson Welles aparece como um mágico (o que ele era desde a infância) fazendo diversos truques e por fim serrando Marlene Dietrich ao meio para delírio dos soldados. Era o Mercury Wonder Show.

– Um precário mas raríssimo fragmento do making of de É Tudo Verdade, com Welles dirigindo os movimentos da jangada dos pescadores no Ceará. Eu tomei a liberdade de filmar a tela com o celular e compartilho aqui com vocês:

– Em trecho de Filming Othelo, Welles discorre sobre a montagem, exemplificando com trechos de Othelo que juntam planos filmados em diversos países numa única sequência. E conclui citando Carlyle, para quem toda arte aspira à música: “Um filme nunca está correto enquanto não estiver musicalmente correto”.

– Uma sequência de seis minutos do Quixote original de Welles. A ação se passa num cinema! Sancho Pança entra na sala à procura de Quixote, que está assistindo ao filme. De repente, o cavaleiro andante levanta-se e dirige-se à tela com sua espada em punho. Combate a cavalaria que se arroja no filme, terminando por rasgar a tela em pedaços enquanto a plateia se retira do cinema horrorizada. Godard e Giorgio Agamben têm essa cena como uma das mais sublimes da história do cinema.

– Parte de duas sequências do interrompido The Other Side of the Wind, ambas passadas em automóveis em movimento. Numa, John Huston e Peter Bogdanovich, entre outros, conversam sobre algo ininteligível para quem não conhece o enredo. Na outra, Oja Kodar faz sexo com um rapaz enquanto o carro é dirigido por outro homem. A montagem (no duplo sentido, pois Oja literalmente monta sobre o mancebo) procura simular a progressão do tesão de Oja à medida que ela tira a roupa e “ataca” o rapaz.

– Por fim, a última entrevista filmada de Welles, pouco antes de sua morte. Ele faz uma espécie de balanço de sua vida e fala sobre envelhecimento: “Envelhecer é uma catástrofe”.


CURTAS       

Não tive tempo de comentar os curtas brasileiros que tenho visto no Festival do Rio ou já havia assistido antes. Mas não queria deixar de mencionar, pelo menos:

– A graça e a fluência de “Projeto Beirute”, de Anna Azevedo. Ela nos leva imperceptivelmente do documentário de observação para a gloriosa performance de rua no Saara multiétnico.

– A inteligência com que Daniela Thomas usa a retrospectiva do MOMA para clarificar a evolução de Lygia Clark da pintura bidimensional para os objetos e a arte participativa. “Lygia Clark em Nova York” é biscoito finíssimo.

– O humor politicamente incorreto, mas irresistível, de Marão no seu “Até a China”. Travelogue animado pelos estereótipos chineses do ponto de vista de um visitante abusado.

– A simpatia e perspicácia de Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman ao encenarem a iniciação do seu filho no cinema em “Outubro Acabou”. Uma joia na fronteira entre o filme doméstico e o cinema de invenção.


NISE – O CORAÇÃO DA LOUCURA

A primeira cena já procura definir o caráter da Dra. Nise da Silveira: ela bate progressiva e insistentemente no portão do hospital até que alguém venha abrir. A gente percebe que ela não desistiria nem em três meses de portão fechado. Assim segue o perfil da heroína: perseverança e firmeza para enfrentar o status quo psiquiátrico dos anos 1940; delicadeza e compreensão profunda para com os internos do hospital.

Esse tratamento tem lá sua dose de maniqueísmo, sobretudo nas primeiras apresentações das terapias agressivas e na resistência movida pela Dra. Nise.    A verdade é que o filme simplifica um pouco as coisas para melhor sintetizar o legado do anjo de Engenho de Dentro. Simplifica até mesmo ao “transcrever” escritos da Dra. Nise em falas excessivamente expositivas e didáticas, que parecem fluir mais de uma personagem pronta do que de uma pessoa em plena ação. Glória Pires, por isso mesmo, está evidentemente melhor nos raros momentos de descontração.

É na encenação das dinâmicas do ateliê de pintura, a parte mais arriscada de seu trabalho, que Roberto Berliner alcança a plenitude do poder de sugestão. O elenco, vivendo Fernando Diniz, Adelina Gomes, Carlos Pertuis e os demais futuros artistas do Museu de Imagens do Inconsciente, tem um desempenho de conjunto simplesmente notável. A melhoria do ambiente e a evolução do estado dos internos e de suas criações artísticas são transmitidos com um ótimo senso de medida e em detalhes esclarecedores e comoventes. Ali justifica-se claramente o uso da câmera na mão, ao contrário de outros momentos em que isso sugere uma instabilidade desnecessária.

O retrato da Dra. Nise, apesar de um tanto monolítico, é bastante ilustrativo de sua batalha por estimular a fantasia e a liberdade dos seus “clientes” como um caminho, se não para a cura, para uma forma de vida mais digna. O contraste entre sua generosidade e suas manifestações de intolerância ao sentimentalismo, rascunhado no filme, indica a existência de contradições que não esgotaram a personagem.


82 MINUTOS

Depois de Chacrinha e Cauby, o documentarista e crítico de cinema Nelson Hoineff se volta para um fenômeno de cultura popular ainda maior, o carnaval. Propõe-se a um trabalho hercúleo na linha do cinema direto de Frederick Wiseman, qual seja o de acompanhar a preparação do desfile da Portela de 2015, da escolha do samba-enredo até a apuração dos votos na Quarta-feira de Cinzas e a polêmica que se seguiu.

De tudo o que até hoje já foi feito sobre a indústria do carnaval, nada se compara a 82 Minutos em matéria de penetração e amplitude. Cada etapa do longo processo, de quase um ano de duração, é documentada nos seus momentos cruciais e decisivos. As câmeras marcam uma presença obstinada nas captações de conjunto e em detalhes geralmente não percebidos. Mas o que deslumbra de fato é o olhar atento aos indivíduos em lugar do mais habitual enfoque de massa. Hoineff conseguiu particularizar elementos que compõem o esforço coletivo, como a emoção de passistas, a expectativa de concorrentes, a tenacidade de instrutores, a soberania de dirigentes.

Resulta a radiografia mais completa que já se viu de um megaevento pautado pela precisão da performance e o profissionalismo do empreendimento. São 125 minutos de filme sobre a história completa de um desfile que precisa durar exatos 82 minutos na avenida. Faço uma ressalva ao excesso de aparições da comissão de frente, elemento pelo qual o diretor parece ter se apaixonado além da boa medida. Mas isso, se alonga um pouco mais a imersão do espectador, em nada reduz o prazer de estar ali, mediado por essa observação de lince.

Tecnicamente, o filme é um triunfo. A fotografia de Pedro Kuster e a montagem de Rodrigo Pastore merecem nota 10. Sem se prender à funcionalidade da documentação, o filme se permite voos estéticos de grande beleza, como um ensaio de mestre-sala e porta-bandeira inteiramente em closes e a sequência em que a câmera segue, enfeitiçada, a caminhada performática de uma sambista. Pelo esforço de presença, pela acuidade do olhar e pelo método criterioso, considero este o melhor filme de Hoineff até hoje.


OLMO E A GAIVOTA

Depois de Elena, ao que parece, Petra Costa encontrou outra “irmã” na atriz italiana Olivia Corsini. Esta, além de não estar morta, estava prestes a dar à luz uma nova vida. Ela é a protagonista de Olmo e a Gaivota, dirigido em parceria com a dinamarquesa Lea Glob. O filme foi coproduzido pela Zentropa de Lars Von Trier e ostenta o nome de Tim Robbins como produtor executivo.

Produtores à parte, é resultado de uma íntima colaboração das diretoras com Olivia e seu marido, o também ator Serge Nicolai, ambos do Thêatre du Soleil. Num misto de documentário  de observação e cotidiano encenado, acompanhamos a intimidade do casal durante o período de gravidez de Olivia, quando ela apresenta uma complicação que a impede de prosseguir nos ensaios de A Gaivota, de Tchekhov.

Obrigada a ficar em repouso durante meses no seu apartamento em Paris, Olivia entrega-se a um longo processo de reflexão. É acometida de temores por sua carreira, pelo envelhecimento, por não se sentir exatamente preparada para a maternidade. A síndrome da gravidez reflete-se no estado emocional de Olivia e na vida do casal.

Há uma permanente indefinição entre o que é vivido espontaneamente e o que é gestado para a câmera como parte de uma busca conjunta de diretoras e elenco no sentido de radiografar a mente de Olivia. Em pelo menos dois momentos, ouvimos a voz de Petra intervir para ajustar os termos da conversação que se desenrola na cena. Petra está muito presente também na linguagem do filme, com seu tom introspectivo, seu foco doce, sua temperatura cálida e ritmo musical. E também na forma evocativa com que trata as cenas de arquivo do passado de Olivia.

Existe uma inspiração inicial no romance Mrs. Dalloway, de Virginia Wolf, mas isso se dilui bastante na experiência afinal gravada. O que impregna de verdade são as vibrantes personalidades de Olivia e Serge, além da interessante mise-en-scène de belos atores fingindo tão completamente que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem.


ARGENTINA 

Carlos Saura prossegue com suas antologias de música e dança ibero-americanas. Depois do flamenco, das sevilhanas, do tango e do fado, ele põe em cena diversas manifestações da música folclórica argentina. A grande descoberta é a variedade daquele universo, com suas zambas, bagualas, chacareras, chamamés, cuelas, malambos, bailecitos e carnavalitos. Os ritmos e toadas se avizinham tanto do tango quanto do flamenco e da música andina. Vocalizações exóticas, danças e sapateados energéticos se sucedem num grande galpão de La Boca, em Buenos Aires, contra fundos coloridos, transparências, espelhos, ampliações fotográficas ou telões de vídeo.

Ou seja, muda a música mas não muda a fórmula que Saura instituiu para essa vertente de sua obra. Repetem-se até as tomadas de abertura com o galpão ainda vazio e uma câmera na grua apontando para um espelho. A invenção deu lugar à mera sucessão de performances, variando o interesse conforme o apelo das músicas (umas contagiantes, outras maçantes) e dos intérpretes, todos astros do folclore argentino. Não faltam alguns experimentalismos que apontam, na verdade, para uma reapropriação do folclórico. Momento particularmente singelo e tocante é a homenagem a Mercedes Sosa ambientada num simulacro de sala de aula onde niños acompanham com palmas o canto da “tia” num telão. Em compensação, uma coreografia de moças caracterizadas como felinas para o ritmo “gato” arranha a cafonice.

Saura e sua equipe filmam com perfeição cada número, mas não vão além do que seria um bom concerto de TV em finíssimo HD.


SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO – A FORMAÇÃO DE UMA CIDADE              

Parte de um projeto da produtora e diretora Juliana de Carvalho que compreende também um livro e uma exposição homônimos, o documentário reconta a história do Rio com base em vasto material iconográfico; depoimentos de historiadores, arquitetos/urbanistas e pesquisadores; textos de viajantes e cronistas de várias épocas; e imagens exuberantes da cidade atual. As abundantes tomadas aéreas fornecem um deleite constante, enquanto os textos e falas, numa estrutura dissimulada de verbetes orais, pontuam passagens definidoras ou pelo menos curiosas da biografia da antiga “Paris nos trópicos”.

Embora narre, no fundo, uma história de remoções, erradicação de imagens da pobreza e embelezamentos, sempre polêmicos, o filme evita entrar diretamente no mérito das novas metamorfoses da administração Paes. Conclui com um chamado à reflexão sobre as funções de uma cidade. A mim, a inequívoca e reiterada beleza do Rio de hoje pareceu prevalecer como mensagem subliminar de uma vitória permanente contra o pessimismo e as resistências à mudança.


LEVANTE!

O média-metragem, realizado em parceria por Susanna Lira e o inglês Barney Lankester-Owen, consiste de uma série de reportagens sobre o uso de novas mídias e das redes sociais na transmissão e recepção de manifestações populares em várias partes do mundo.

Temos, então, a atuação da Mídia Ninja com seus smartphones no Brasil, o que em 2013 provocou o primeiro grande pico de utilização do aplicativo japonês Twitcast; o movimento #YoSoy132 do México (2012), quando universitários conseguiram grande apoio da população a partir do uso criativo das redes; na Faixa de Gaza conhecemos duas jovens engajadas na divulgação dos horrores sofridos pelos palestinos, uma através de um canal do Youtube, outra de pequenos vídeos confessionais no Twitter; e o Umbrella Movement de Hong Kong (2014), contrário à manipulação das eleições pela China, amplamente filmado por um drone para um canal de TV – a ponto de gerar uma estética de massa apta a ser registrada do alto.

Em cada um desses segmentos há cenas dramáticas, confrontos violentos, bombardeios, etc, mas o foco está nos indivíduos (jovens) e na tecnologia cada vez mais portátil que faz da luta política, hoje, um emaranhado de mídias e uma mídia de muitos. O material é “quente”, atualíssimo, e merece ser estendido para um longa-metragem, o que está nos planos dos diretores.


ALLENDE MEU AVÔ ALLENDE

Quando fez o seu Salvador Allende, há 11 anos, Patricio Guzmán tratou de situar o vazio que Allende deixou na alma política chilena. Seu filme era uma biografia política tocada pela nostalgia. Em Allende meu Avô Allende, encontramos algo bem diferente. Como adianta o título, é um documentário familiar, um filme de busca de vestígios de memória doméstica e superação de um longo silêncio.

Enquanto vasculha os baús e as recordações de parentes e amigos, Marcia Tambutti Allende vai expondo, pela primeira vez, o vazio que o avô deixou na família. O trauma foi enorme. A casa foi bombardeada por ocasião do golpe, os álbuns de fotografias se perderam. Três parentes próximos se suicidaram depois do próprio Salvador. A dificuldade de sair do silêncio é evidente em várias conversas, quando os entrevistados pedem para interromper a filmagem. Fotos e filmes domésticos são trazidos à luz e comentados pelos familiares. As conversas com a viúva de Allende, Hortensia, fazem os momentos mais intensos da coleta da neta. As relações extra-conjugais do marido, de que ela tinha notícia, eram fonte de sofrimento.

Talvez não haja tanto assim a recuperar da vida privada do ex-presidente, tão invadida que era pela vida pública. Por isso o filme se coloca mais como uma tentativa de reconstruir um retrato de família do que um perfil do personagem-título.


OS PANTERAS NEGRAS: VANGUARDA DA REVOLUÇÃO

Quem conhece os documentários de Stanley Nelson sobre a história da Black America já sabe mais ou menos o que esperar: um senso de narrativa primoroso, materias de arquivo preciosos e depoimentos iluminadores. Assim é também esse filme sobre a ascensão e queda dos Panteras Negras, partido e organização social criada nos anos 1960 para lutar contra o racismo e o capitalismo nos EUA.

Diversos ex-membros, com seus cabelos embranquecidos ou pintados, contribuem com lembranças e considerações sobre os anos de fogo dos Panteras. Fala-se de organização interna, de vida comunitária, dos serviços de assistência social que pretendiam alimentar o sentimento revolucionário, da expansão do movimento através do país, da massiva participação feminina, do Panther look que contagiou a juventude (não só negra) americana e, claro, das principais bandeiras que moviam a energia do grupo. Faz-se, ainda, a crônica das maiores lideranças e de como, após a ferrenha perseguição do FBI de Edgar Hoover – incluindo o uso de um agente infiltrado na segurança de um dirigente -, o partido se rompeu em duas facções e por fim se desintegrou, já na década de 70.

Ex-policiais (os “porcos”) e um ex-agente do FBI ajudam a contar essa história de insurgência e repressão, na qual as forças governamentais se julgaram proativas no combate a uma forma de terrorismo.

Stanley Nelson trata o material com a possível objetividade, sem transformá-lo nem numa ode à rebelião, nem num elogio da lei e da ordem. No entanto, revela dados constrangedores sobre o dissenso interno dos Panteras, o radicalismo panfletário do mentor intelectual Eldridge Cleaver (que mais tarde se converteria ao Cristianismo e apoiaria Ronald Reagan) e sobretudo a decadência do líder supremo Huey Newton, pintado em seus últimos anos como um maníaco viciado em drogas.

Esse retrato do movimento não agradou a alguns de seus antigos líderes. Elaine Brown, por exemplo, chegou a pedir (em vão) para retirar seus depoimentos do filme, alegando que Nelson atentou contra a história e a memória do partido com um filme que serve à direita. Outro grande líder ainda vivo, Bobby Seale, não aparece na atualidade por razões que desconhecemos. Tudo isso só demonstra que a História, por mais que pareça bem contada, nunca adquire uma versão que contemple todas as versões. É como a fábula que abre o filme, do elefante apalpado e definido de maneiras diferentes por vários cegos.


ANDRÉ MIDANI – DO VINIL AO DOWNLOAD

O propósito desse documentário parece bem claro: reunir músicos e personalidades da cultura para um tributo informal ao mitológico produtor responsável por tantas revelações, encontros e carreiras na música popular brasileira. Mas parece que em algum momento do processo a coisa desandou e ficou difícil manter o objetivo inicial. No princípio, é o próprio André Midani quem relata os primeiros lances de sua biografia, da Síria natal a Paris e dali ao Rio de Janeiro. Mas quando a música brasileira entra em sua vida – ou talvez seja melhor dizer o contrário -, a dispersão substitui qualquer ideia de exposição organizada.

As conversas, refeições e excessivas “canjas” musicais se alternam, estreladas por um grande elenco. Frequentemente, porém, as lembranças e comentários esparsos sobre as diversas fases da MPB não têm relação direta com Midani ou, se têm, estas ficam implícitas demais para quem não é estritamente do ramo. O personagem-título ora é o âncora de uma rede de histórias, ora é mero ouvinte. Ao fim e ao cabo, as celebridades estão ali mais como valores de produção do que como valores (narrativamente) produtivos.

Há um quê de ostentação naquela confluência de amigos e colegas para trocar elogios e eventualmente manifestar seu reconhecimento a Midani. E perde-se a oportunidade de clarificar a essência e a importância de um grande produtor como ele.


LIVRO “CINEMA BRASILEIRO HOJE”

Hoje, 5 de outubro, às 19 horas, será lançado na sede do Festival do Rio (Av. Rui Barbosa, 762 – Flamengo) o livro bilíngue (português e inglês) Cinema Brasileiro Hoje – Ensaios de críticos e especialistas de todo o país. Com curadoria da jornalista e crítica Susana Schild, o livro oferece um panorama da evolução e das tendências atuais da indústria cinematográfica brasileira.

Eu participo com um capítulo sobre o documentário contemporâneo. Os demais artigos são assinados por Orlando Senna, Luiz Zanin, Sérgio Moriconi, Luiz Joaquim, Paulo Henrique Silva, Rubens Ewald Filho, Maria do Rosário Caetano, Ivonete Pinto, Daniel Schenker, Nelson Hoineff, Sávio Luis Stoco, Juliano José de Araújo e Ricardo Agum Ribeiro. Veja aqui o sumário completo.

Segundo o release oficial, o Americas Film Conservancy-AFC e o Latin American Training Center-LATC uniram forças para apresentar essa perspectiva nova e diversificada sobre a vitalidade do audiovisual brasileiro a partir de olhares sobre o passado, o presente e as futuras direções desta indústria dinâmica. A publicação representa o objetivo do AFC e do LATC de apoiar a liberdade de expressão no cinema e de sua crítica, bem como atuar na sensibilização do público de que o cinema é uma expressão artística importante, além de um meio de entretenimento.

Além de uma ferramenta para o estudo e o debate sobre o cinema brasileiro, a compilação também serve como uma caixa de ressonância para os mais representativos críticos do país sobre os temas de relevância em suas respectivas cidades e regiões. Publicado em formato bilíngue inglês-português, o livro busca oferecer o acesso mais amplo aos leitores ao redor do mundo. Em breve, estará disponível na Amazon e em livrarias no Brasil.


CORDILHEIRAS NO MAR: A FÚRIA DO FOGO BÁRBARO

Memórias e convicções políticas já foram abaladas nas primeiras exibições, no Cine Ceará, do documentário Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro, de Geneton Moraes Neto. A promessa era de um filme sobre Glauber Rocha em que não se falaria de cinema, mas só de política. Nada tão impossível, uma vez que Glauber era, de certa forma, tanto um político que fazia cinema quanto um cineasta que fazia política. A exuberância oral e escrita do baiano constitui um manancial aparentemente inesgotável. E Geneton trouxe à luz mais algumas peças desse imenso quebra-cabeça.

Cordilheiras do Mar fala do projeto político de Glauber para um Brasil revolucionário tendo a imagem de Nossa Senhora levada à frente. Pelo menos é essa a cena proposta por ele a Janio de Freitas, um dos muitos entrevistados no filme sobre suas relações com Glauber. Essa ideia de uma revolução sincrética, autóctone e terceiro-mundista sofreu um choque em 1974, quando ele deu declarações bombásticas apontando os militares como “os legítimos representantes do povo”, apostando em Geisel como arauto da redemocratização e chamando Golbery de “gênio da raça” comparável a Darcy Ribeiro. O episódio gerou uma das maiores polêmicas políticas do Brasil recente e nunca deixou de voltar à discussão.

O filme de Geneton reabre o debate trazendo de volta a furadíssima tese do “assassinato cultural” de Glauber. Mas aporta também novos matizes através de cartas e testemunhos de jornalistas, cineastas e políticos. Há depoimentos inéditos de gente como o crítico francês Serge Daney, o cineasta Jean Rouch, o líder camponês Francisco Julião e Miguel Arraes. Em gravações recentes, Orlando Senna, Cacá Diegues, Zuenir Ventura, Flavio Tavares, Luiz Carlos Maciel, Luiz Carlos Barreto, Jards Macalé, Jaguar, Caetano Veloso, Zelito Viana, Reis Velloso e Raimundo Fagner relembram “causos” reveladores do misticismo, do histrionismo e do grão de delírio que se embolavam nas concepções políticas de Glauber. Uma das informações mais relevantes é que o voto de confiança em Geisel não partiu originalmente de Glauber, mas de conversas privadas dele com Jango e Miguel Arraes, todas devidamente testemunhadas.

O ator Claudio Jaborandy faz uma ótima personificação de Glauber falando o texto de uma substanciosa entrevista ao jornalista baiano Jary Cardoso em 1978. Além disso, temos atores fazendo declamações e até exibições de dançarinos de passinho. Tudo isso fornece ao documentário uma dinâmica atraente, menos pesada que em outros docs anteriores do diretor.

Ainda assim, e apesar do carisma dos entrevistados, o filme acaba se tornando um pouco reiterativo. As verves de Glauber e Geneton se juntaram para tocar a fronteira do excesso, com assuntos se repetindo em variações às vezes tênues. Mas o que representa o maior risco de Cordilheiras do Mar, a meu ver, é sua audaciosa composição dialética. Para refletir a complexidade do pensamento de Glauber, especialmente naquele episódio, Geneton reúne pontos de vista bastante contrastantes. Em certos momentos, a coisa parece tomar um rumo revisionista do papel dos militares (há até dobrados militares na trilha sonora). A crítica à esquerda é quase incessante, culminando com a imagem final de um rapaz sendo engolido pelo mar com uma bandeira vermelha em punho.

Geneton quis dar a esse filme o tom de um chamado às consciências políticas atuais no sentido de se abandonar o maniqueísmo ideológico e retornar à complexidade das nuances e do contraditório. É a isso que se referem as falas reservadas pela edição para o final. Dado o estado de ânimo que prevalece hoje no país, é bem possível que o filme seja recebido com desconfiança ou mesmo rejeitado por quem nunca abandonou suas convicções.


GRANDMA

Pode ser até que Lily Tomlin concorra ao Oscar por esse papel, mas o filme de Paul Weitz dificilmente será lembrado por outra coisa daqui a um ano. Mero veículo para a atriz, Grandma tenta ser uma comédia moderninha sobre novas configurações familiares e abismo geracional. Lily passa o filme inteiro ligada na mesma tomada: uma avó lésbica e desbocada, expressando-se em tom desafiador e irônico, fumando baseado e movendo-se num carro vintage dos anos 1950 (de propriedade da atriz). Poeta falida, ela quer ajudar a neta a conseguir dinheiro para interromper uma gravidez, mas seus esforços só lhe trazem confrontações com um passado pessoal conturbado.

Apesar de alguns diálogos espirituosos, não há nada além de caricaturas pré-fabricadas fazendo fachada para um melodrama familiar barato. Uma filha criada por duas mães, aborto positivado e transexuais simpáticos conferem um ar de trangressão ao roteiro, mas não disfarçam o jeitão de telefilme careta. Lily Tomlin merecia um veículo melhor.


FUTURO JUNHO

Enquanto os teóricos do documentário de observação preceituam que uma fase de crise ou transformação dos personagens é a ideal para esse tipo de filme, Maria Augusta Ramos, uma das poucas cultoras do modelo no Brasil, costuma optar pelo oposto. Seus filmes geralmente tratam de pessoas vivendo suas rotinas. Através delas, a diretora procura traçar radiografias de determinados estamentos sociais ou do momento de uma coletividade. Maria Augusta filma estados, não processos.

Futuro Junho aborda o período imediatamente anterior à Copa de 2014, em São Paulo, através de quatro profissionais. Por coincidência ou dispositivo, todos têm nomes com a inicial “A” e se colocam em diferentes posições relativamente à mobilidade urbana. São eles o articuladíssimo funcionário de uma corretora de investimentos que cruza a cidade em seu carro, um tranquilo operário da indústria automobilística, um ativista do sindicato dos metroviários (o único vivendo a situação excepcional de demitido) e um motoboy habitante da periferia. O filme os observa – separadamente – no trabalho, no convívio doméstico e em conversas sobre a conjuntura do país. Nessas conversas são tratados desde os aspectos macroeconômicos até pormenores sobre saúde e planejamento familiar, passando pelo movimento grevista, as relações entre sindicato e fábricas, as críticas à FIFA e as expectativas quanto à Copa. Pode-se ver ali, com o dólar ainda a 2,20 reais e as primeiras dificuldades do governo Dilma, a semente da crise atual.

O recorte classista adotado pode sugerir um retorno ao documentário sociológico vigente nos anos 1960-70, que tem em Viramundo, de Geraldo Sarno, um de seus expoentes. Mas é preciso considerar que Futuro Junho não busca o contraste retórico nem o diagnóstico da sociedade. As quatro linhas paralelas que se estendem no filme, pontuadas por conflitos entre grevistas e policiais, revelam principalmente as diferentes inserções dos personagens na vivência e na discussão do momento nacional.

Nunca é demais destacar a qualidade técnica da captação de som e imagem nos filmes de Maria Augusta. Nesse trabalho em particular, sua capacidade de mobilizar os personagens em cenas privadas atinge um grau de excelência.


ESCRITÓRIO

O modelo são as business-comedies americanas dos anos 1960, como Se Meu Apartamento Falasse e Como Vencer na Vida sem Fazer Força. Adapte-se esse modelo à configuração do neo-capitalismo oriental e temos essa comédia dramática musical de Johnnie To.

As tramas não diferem muito do tradicional: um jovem funcionário disposto a subir no emprego namora uma secretária que esconde sua condição especial dentro da firma. Um supervisor tenta corromper uma subalterna apaixonada. Uma executiva mantém romance secreto com o presidente da empresa. Em meio a estratégias para diversificação dos negócios e os reflexos da concordata da Lehman Brothers em 2008, o staff da corporação cumpre os padrões de eficiência militar, subserviência risonha e fofocas sussurradas.

E eles cantam, é claro, para deixar bem claro que tudo é uma sátira à escravidão contemporânea. As canções, variando do romântico pop chinês a rocks meio marciais, ostentam versos como “Ouçam, os bônus são música para os meus ouvidos” ou “Minha cidade natal tem um bom feng-shui”. Uma severa discussão profissional pode assumir a forma de uma luta de boxe, assim como a chegada do pessoal pela manhã pode sugerir uma versão pós-moderna de Metrópolis. O estilo energético e artificialista de Johnnie To não deixa de ser uma extensão do modo de vida de Hong Kong, com sua arquitetura corporativa cheia de espaços vazados e transparentes. Até as moradias e os vagões de metrô exageram na transparência, eliminando em boa parte as paredes. O engajamento individual pleno e a visibilidade total são característicos dessa nova forma de escravidão.

As grandes presenças no elenco, embora coadjuvantes, são de dois superastros asiáticos. A atriz Sylvia Chang, que faz a executiva, é a autora da peça original, Design for Living, e coprodutora do filme. O superastro Chow Yun Fat empresta seu charme imponente à figura do chefão supremo. Mas nada salta mais aos olhos e aos ouvidos do que a estilização frenética e a boa ideia de ressuscitar um subgênero esquecido à febre capitalista asiática atual.


11 MINUTOS

Mesmo quando não está em seus melhores filmes, Jerzy Skolimowski é capaz de deixar a plateia boquiaberta com a energia cinética e a precisão de sua técnica. Em 11 Minutos, ele adota a surrada estrutura multiplot para fazer mais um de seus exercícios de virtuosismo. Uma ciranda de personagens vivem momentos tensos que se distribuem em 11 minutos de suposto tempo real. A narrativa é um prisma circular que vai passando por adultérios, acerto de contas, assalto frustrado, violência familiar e um simples passeio de cachorro em que a câmera por vezes assume o ponto de vista do animal. O tempo é recortado e repaginado, como um livro que vai sendo folheado ora numa direção, ora em outra. Cenas são revisitadas por ângulos diferentes a cada vez.

O filme parece testar seus limites em termos de entendimento, excitação visual e sonora, e mesmo quanto à segurança da filmagem e dos atores.  Pequenos apocalipses rondam cada personagem, passo a passo rumo ao bombástico final que os reúne a todos e quase incendeia Varsóvia. Como alguns outros filmes de Skolimowski, este se impõe mais pela forma alucinante do que pela substância, mais pelos sentidos do que pelo sentido.

O prólogo apresenta alguns personagens mediados por telas de smartphone, laptop e sistema de vigilância, como a sugerir um estudo sobre a natureza das imagens hoje em dia. Esses dispositivos voltam a aparecer em situações diversas, mas sua presença no filme talvez seja apenas como um atestado de ineficiência. Eles não garantem comunicação, nem prazer, nem segurança, nem mesmo a previsão de acidentes.


UMA VERDADE CINTILANTE

A imagem de um velho curvado caminhando entre latas de filmes empoeiradas e entulhos não é tão incomum a muitas cinematecas pelo mundo. Mas o caso de Isaaq Yousif, conservador dos arquivos da Afghan Films, o instituto nacional de cinema do Afeganistão, é particularmente dramático. Nos anos 1990, ele viu os talibãs fazerem grandes fogueiras de filmes para limpar o país da cultura devassa. Com sua equipe, conseguiu esconder centenas de latas em forro de teto, salas dissimuladas e contêineres. Assim salvaram boa parte da memória cinematográfica afegã.

Uma Verdade Cintilante, dirigido pela neo-zelandesa Pietra Brettkelly, mostra o trabalho de resgate e restauração daquele acervo a partir de 2012, quando assumiu a direção do instituto o ex-técnico e ex-ator Ibrahim Arify. Emigrado para a Alemanha, Arify conduz com mão de ferro os trabalhos de limpeza e reorganização num ambiente marcado pela miséria e a incúria. Graças ao trabalho desse grupo de devotados cinéfilos, que inclui o jardineiro do instituto, ainda podemos ver cenas históricas, cinejornais, trechos de filmes românticos – incluindo moças de minissaia – e documentação de conflitos desde os anos 1940, quando o rei Zahir Shah introduziu a produção de cinema no país, até recentemente, passando pelo período de ocupação soviética.

Os talibãs perderam o poder, mas não o poder de ameaça. Tanto que as exibições itinerantes de filmes restaurados da Afghan Films não podem incluir áreas que continuam controladas pelos radicais de turbante. Em permanente estado de pré-guerra civil, o Afeganistão segue sendo área de risco também para o cinema. Enquanto Pietra lá filmava, o prédio da Afghan Films foi atingido pela explosão de uma bomba.

A luta dos bravos guerreiros da cinemateca tem recebido ajuda da Alemanha e dos EUA, mas o empenho de Arify é no sentido de restaurar uma cultura autenticamente afegã, ou seja, nem árabe, nem americana ou russa. O documentário conclui com uma bonita sucessão de exibições populares em aldeias, escolas e quartéis. Uma vitória frágil por enquanto, assim como a saúde do velho Yousif, abalada pelo tempo, a poeira e os traumas de toda uma vida.


K2 E OS LACAIOS INVISÍVEIS

A documentarista e ativista globetrotter brasileira Iara Lee pousou desta vez na fronteira do Paquistão com a China, onde fica a K2, a segunda montanha mais alta do mundo. Os alpinistas que alcançam o seu topo ganham fama para sempre, principalmente se vêm de países ricos e desenvolvidos. Mas Iara os coloca como coadjuvantes num filme estrelado, isso sim, pelos humildes carregadores que transportam nas costas o peso pesado nas caminhadas e escaladas.

Eles são fortes e resistentes, muitos são analfabetos e sobrevivem apenas da temporada de alpinismo, entre maio e outubro. Ninguém se importa muito com eles, mesmo quando morrem no trabalho ou precocemente devido às más condições de vida. São explorados com remunerações irrisórias, bem inferiores aos seus colegas nepaleses do Everest, os “sherpas”, mais bem treinados do que eles. No entanto, sua importância é vital para orientar e ajudar os alpinistas em momentos difíceis.

O filme, supostamente, segue uma expedição paquistanesa ao pico do K2 em 2014, mas que ninguém espere um mínimo de organização na forma como Iara Lee expõe os eventos. O que temos é uma bela bagunça de narrativa documental, em que se pula de um assunto a outro sem muito nexo nem sentido de progressão. As belíssimas paisagens do Himalaia são sabotadas por uma filmagem inepta e uma edição atarantada que parece tentar emular os programas de turismo veloz da TV. Em certas passagens, é como se tivessem ligado um dispositivo randômico na ilha de edição, com imagens se sucedendo, literalmente, aos trancos e barrancos. Um tema interessante, sem dúvida, mas prejudicado por um tratamento superficial e inadequado.


SEMBENE! – O PAI DO CINEMA AFRICANO

por Patricia Rebello

Quatro anos depois da morte de Ousmane Sembene (1923-2007), Samba Gadjigo, biógrafo oficial do diretor, professor de estudos culturais africanos em Massachusetts e codiretor do documentário, retorna pela primeira vez à casa onde Sembene morou e trabalhou durante boa parte da vida. Localizada em Dakar, as portas de Galle Ceddo (literalmente, casa de Ceddo, referência ao terceiro filme da trilogia política do diretor, de 1977) são a um só tempo a porta de entrada do documentário e também o motivo pelo qual ele foi realizado: não apenas render homenagem ao controverso e radical diretor, mas também preservar uma obra que fala ao coração da cultura africana – e, porque não dizer, do próprio cinema.

Sembene nasceu no Senegal quando o país ainda era colônia francesa. Em 1952 vai para Marselha, onde se torna estivador. Um acidente na coluna obriga o jovem a parar de trabalhar e a partir daí ele passa os dias imerso em leituras na biblioteca da cidade. Lá, descobre os grandes textos e escritores, surge a paixão pelas letras. E lá descobre também uma imagem da África completamente deslocada das questões do cotidiano, das tensões políticas, da violência. Regressando à África, engaja-se profundamente em duas atividades: a literatura e o cinema. Ao longo da vida, o diretor e agitador da cena cultural escreve dez romances e treze filmes, quase todos sempre atravessados por conturbadas questões com os poderes instituídos, ora banidos, ora censurados ora perseguidos pelo governo pós-independência, nos anos 1970. Comprometido politicamente com a liberdade de expressão e o reconhecimento do povo africano, autodidata por definição, Sembene encarna um desejo revolucionário fundamental no cenário, por uma ideologia, como ele mesmo diz, “sem complexo de justificação”.

O documentário é, de certa forma, o elogio dessa figura, e nisso está sua força e sua fraqueza. Rico em imagens da obra do diretor (Gadjigo é um dos principais conhecedores da obra), a cinematografia de Sembene retoma de maneira notável e fresca os procedimentos do neorrealismo italiano e do Cinema Novo brasileiro: filmagens em cenários reais, montagem sem efeitos particulares, atores não profissionais, simplicidade dos diálogos, além de colocar em cena temas como guerra, a condição da mulher, o processo colonial (e sua herança). A trilha sonora também faz do documentário uma experiência bastante singular, com composições de Philip Glass (interpretadas pelo grupo mineiro Uakti) e de nomes importantes da música africana, como Baaba Maal e Youssou Ndour.

Por outro lado, o discurso elegíaco passa batido por episódios no mínimo questionáveis envolvendo o diretor, como o suposto roubo de um roteiro realizado por um de seus alunos e o uso de um fundo para jovens realizadores senegaleses para a produção do filme (que viria a ser o importante Camp du Thiaroye, de 1988, sobre o massacre dos soldados senegaleses pelas tropas francesas em seguida à 2a Guerra Mundial. Ou a controversa sequência de Moolaadé (2004): para narrar o grotesco ritual de mutilação genital de uma menina africana, Sembene submete uma criança que havia realmente passado pelo ritual a uma encenação do evento, sem no entanto avisar a ela que não haveria cortes nem mutilações dessa vez. O resultado é uma imagem agonizante, no limite terrorista, justificada pelo diretor como uma necessidade para poupar a vida de muitas outras meninas iguais àquela. Inequivocamente, Sembene é um grande personagem, repleto de dialéticas, uma composição de fragmentos. Você pode amar e/ou odiar, mas acima de tudo precisa conhecer.

Patricia Rabello


DOUG AITKEN – DE ESTAÇÃO EM ESTAÇÃO                                

Logo depois da Revolução Russa, trens agitprop cruzaram a URSS levando performances teatrais e materiais de propaganda bolchevique. Uma releitura desse modelo é o que propôs o artista contemporâneo Doug Aitken em seu Station to Station. Em 2013, um trem atravessou os EUA de Nova York a São Francisco abrigando em seus vagões ou conectando em estações uma série de músicos, dançarinos, acrobatas, artistas visuais, arquitetos, pensadores e até um daqueles leiloeiros de voz velocíssima do interior. Uma súmula desse evento itinerante é apresentada aqui em 62 segmentos de 1 minuto.

Não há fronteiras definidas entre documentário, music video, videoarte e videowall. No elenco, Cat Power, Giorgio Moroder, o cantor Beck e o artista plástico brasileiro Eernesto Neto (com seu Bicho Suspenso na Paisagem) são os poucos de que eu já tinha notícia. Para a maioria de nós, funciona como uma apresentação muito sumária de artistas completamente desconhecidos, muitos deles marginais na cena americana. Em meio a fragmentos de performances e entrevistas, eles falam de estrada, movimento, criação artística e sobre o próprio umbigo.

O filme se apresenta como um animal em permanente mutação, muito sintonizado com a percepção dos dias de hoje: coisas curtas e rápidas para se ver na web entre uma tarefa e outra. Uma surfada sobre o estado da arte, ligeira e cintilante como um trem iluminado cortando a paisagem.


FILHA DA ÍNDIA

Em dezembro de 2012, uma jovem estudante de medicina de Delhi foi estuprada por um grupo de rapazes dentro de um ônibus, brutalmente seviciada e jogada à margem da rua. Dois dias depois, ela não resistiria aos ferimentos. O caso, abraçado por estudantes e jovens ativistas, levou a protestos que duraram por todo um mês e quebraram o silêncio indiano a respeito desse tipo de crime, habitual no país. India’   s Daughter, de Leslee Udwin, é um documentário de coprodução indo-britânica que pretende investigar as raízes e os efeitos daquele episódio.

O que o filme tem de mais importante é vocalizar, através de personagens envolvidos no crime, seus familiares e advogados, a complexa e arcaica base cultural que está por trás dos estupros indianos. De um lado, uma ideologia machista que vê a mulher como “um diamante” a ser protegido, e que se for deixado na rua será certamente arrastado pelos cães. A culpa, portanto, é sempre da vítima. Jyoti Singh, a moça de Delhi, voltava do cinema com um amigo – e isso seria suficiente para justificar qualquer tipo de agressão contra ela. Falando diretamente para a câmera, um cúmplice dos estupradores chega a afirmar que só 20% das garotas em Delhi são “de bom caráter”.

Os criminosos, condenados à morte, vinham de famílias miseráveis das favelas, e seus pais também choram por eles, tal como os de Jyoti. Não há saída fácil para quadro tão arraigado e dramático, a não ser uma profunda reforma de mentalidades só alcançada através da educação. O filme levanta essas questões enquanto reconstitui o caso com base em depoimentos e pequenas reencenações. Vale principalmente como aprofundamento de matéria jornalística e mote para debate, como o deste sábado, 3/10, após a sessão das 19h30, no Centro Cultural da Justiça Federal, com Ana Paula Sciammarella, advogada e coordenadora do Comitê Latino-americano de Defesa dos Direitos da Mulher.


CHICAS NUEVAS 24 HORAS

Mabel Lozano é uma ex-atriz e ex-apresentadora de TV espanhola que se recriou como documentarista especializada em direitos das mulheres. Chicas Nuevas 24 Horas é a segunda vez que ela documenta o tráfico internacional de mulheres para prostituição, assunto antes abordado em Voces contra la Trata de Mujeres, de 2005. A partir da informação de que, a cada ano, 4,5 milhões de “chicas” são contratadas num negócio que rende cerca de 32 milhões de dólares, somos conduzidos através dessa rede estendida entre a Espanha e vários países sul-americanos.

As mulheres são recrutadas em locais como escolas e discotecas para supostamente trabalhar em restaurantes. Muitas se sacrificam para custear a viagem, em rotas que podem passar por São Paulo, Itália (para “visitar o Vaticano”) ou Panamá até a Espanha (terceiro maior consumidor de prostituição depois da Tailândia e de Porto Rico, segundo o filme). As famílias às vezes estimulam as viagens em troca de dinheiro e das remessas que virão. As “chicas” não raro terminam endividadas, doentes ou mortas no exílio.

Mabel Lozano vai a bares de putas no interior do Peru, investiga a indústria de classificados de sexo e entrevista mulheres peruanas, colombianas e paraguaias. Ela combina procedimentos diversos como depoimentos, cenas ilustrativas de rua, estatísticas e câmera oculta em clubes espanhóis. Com isso forma um painel bastante informativo, embora redundante aqui e ali. Mas nada prejudica tanto o filme como um irritante dispositivo ficcional que simula uma palestra sobre o modelo de negócio da “trata”. A ironia, além de deslocada, é feita de maneira grosseira e incompetente.


CHICO – ARTISTA BRASILEIRO

“Nunca fui tímido. Quando era pequeno, era até chamado de ‘show-boy'”, garante Chico Buarque a certa altura do filme de Miguel Faria Jr. E é mesmo sem timidez, mas sim com simpática discrição, que ele se abre para nós numa entrevista biográfica que serve de esteio para Chico – Artista Brasileiro. Relembra a infância, o início de carreira fermentado na admiração pela Bossa Nova, a politização de sua música e a perseguição pela censura na época da ditadura, as experiências doce-amargas do exílio, o gosto da liberdade na democracia, a chegada da literatura a sua obra, e por aí afora. Junto com isso vêm as reflexões sobre memória e imaginação, as funções do inconsciente na criação musical e literária, os dilemas da maturidade e do envelhecimento.

Talvez não haja mesmo nenhuma grande novidade no perfil que já conhecemos do Chico, artista anti-estelar por excelência e cuja vida privada esteve tanto quanto possível exilada de seu mundo profissional. O que se pode esperar, então, de um documentário como esse é mesmo conviver um pouco mais com a modéstia bem-humorada e a afabilidade inteligente do cara. O seu pendor para contar histórias e contagiar o ouvinte com suas próprias risadas é um deleite permanente.

Como em Vinicius, Miguel Faria Jr. intercala depoimentos com materiais de arquivo e performances especialmente filmadas. Entre essas últimas, eu destacaria a cantora portuguesa Carminho dando cores de fado a Sabiá e o dueto malicioso de Adriana Calcanhotto e Mart’nália. De resto, não se foge muito de um certo padrão convencional de interpretações reverentes por cantores inesperados. No quesito performance, nada supera o olhar embevecido do compositor diante de Maria Bethania cantando Olhos nos Olhos em algum lugar do passado.

Embora seja bastante parcimonioso no elenco de entrevistados – somente Miúcha, Edu Lobo, Ruy Guerra e Wilson das Neves, além do próprio Chico –, Miguel criou uma estrutura narrativa que acabou se alongando para além do conveniente. Os últimos 15 minutos do filme sugerem um esgotamento e uma perda de foco que não combinam com o personagem. Ouso pensar que uma volta à ilha de edição, antes do lançamento, poderia levar o filme a seu ponto ótimo.


TOO MUCH JOHNSON

Em 1938, Orson Welles tinha 23 anos e um curta surrealista (The Hearts of Age) no currículo quando rodou Too Much Johnson, uma comédia maluca feita para ser projetada junto com a peça homônima de William Gillette, de 1834. A peça fracassou antes mesmo que se criassem as condições para projeção do filme, que viria a se perder. Misteriosamente, há dois anos foi encontrada uma cópia de trabalho num arquivo da Itália. Das quatro horas e meia alegadamente filmadas, o material tinha 66 minutos e foi uma grande descoberta.

Welles fez uma homenagem à comédia silenciosa, tanto na direção de arte e na atuação do elenco, como na filmagem em velocidade mais lenta para que o filme, ao ser projetado, ganhasse a aceleração de 20 anos antes. A ação principal acompanha a fuga de um advogado (Joseph Cotten) da perseguição implacável movida pelo marido (Edgar Barrier) de sua amante (Virginia Nicholson). A correria se estende por ruas de Nova York e pelos telhados do antigo Washington Market, hoje o Meatpacking District de Manhattan. Sempre em ritmo acelerado, a perseguição chega ao porto e embarca num navio rumo a Cuba. E continua numa Cuba falsa, filmada numa pedreira no Vale do Hudson.

Ao que tudo indica, é um material bruto, já que a montagem, feita pelo próprio Welles enquanto filmava, nunca teria sido concluída. Há quem afirme que são apenas out-takes, ou seja, cenas cortadas da edição principal. Pode bem ser, afinal contém tomadas repetidas com pequenas variações, movimentos titubeantes de câmera, planos de atores brincando para a lente, membros da equipe se esgueirando do quadro e até flagrantes de making of, como ajudantes segurando as falsas palmeiras “cubanas”. É claro que isso só eleva a curiosidade do filme. Afinal, temos acesso a algo como um copião de Orson Welles, o que não é pouca coisa.

O cineasta principiante presta tributo às comédias da Keystone e de Buster Keaton, para o que contou com o destemor de Joseph Cotten em se arriscar por telhados e precipícios, numa atuação quase circense. O cinema surrealista ganha sua referência no hilário bloco de ação em que o marido arranca o chapéu de todos os homens com quem cruza na rua para tentar identificar a testa do seu desafeto, de quem só conhece a parte superior de uma foto rasgada.

Apesar do tom jocoso, Too Much Johnson prenuncia muita coisa que faria a reputação futura de Welles. A exploração da profundidade de campo e dos ângulos pouco ortodoxos antecipa o estilo de Cidadão Kane. A brincadeira com os trópicos não deixa de ser um antecedente de It’s All True. O labirinto de caixotes e cestos que ambienta parte da perseguição no porto faz pressentir o espólio de Kane em Xanadu. E a adaptação teatral seria a primeira de tantas que Welles iria dirigir.


IRIS, UMA VIDA DE ESTILO

por Patricia Rebello

Em algumas entrevistas, acontecia de Albert Maysles mencionar que quando criança tinha dificuldades de aprendizagem, e que o medo de estar perdendo algum conteúdo da fala dos professores desenvolveu nele uma capacidade de escuta e de observação bem mais apurada que a das outras crianças. Não por outra razão, os documentários  de Maysles (que faleceu em março deste ano, aos 88 anos) trazem, indiscutivelmente, o olhar atendo do realizador para as singularidades do cotidiano. Junto ao irmão David (que se foi bem mais cedo, em 1987), Albert desafiou as convenções do documentário de observação dos anos 1960 ao inserir a figura do diretor nos filmes. Uma transgressão que levou o cinema direto a dimensões inesperadas, e que podem ser testemunhadas em filmes como Gimme Shelter (1970) e Grey Gardens (1976).

Iris é o penúltimo filme do realizador (o último, Em Trânsito, também está na programação do festival) e também uma celebração de vida. O documentário conta a história de Iris Apfel, uma espevitada senhorinha de 94 anos. Decoradora de interiores, ícone do mundo fashion (é uma das musas “ageless” da hora, ao lado de Charlotte Rampling e Joan Didion), Apfel começou a chamar atenção em 2005, quando o Metropolitan Museum of Art organizou uma exposição com a enorme coleção de roupas e acessórios da moça: Rara Avis (Rare Bird). De vestidos exclusivos de Versace e Dior, passando por peças garimpadas em mercados de pulga ao redor do mundo, até badulaques dignos da rua da Alfândega, no Rio, ou da 25 de Março, em São Paulo, Iris encarna a moda naquilo que ela tem de mais divertido: uma montagem de elementos high/low, caro e barato, clássico e transgressor.

Todavia, bem mais que o retrato de um ícone, o documentário festeja o encontro de duas pessoas cujo combustível da vida é um encanto e paixão genuínos pelos pequenos encontros e descobertas que acontecem todos os dias – e que são cada vez mais raros em um tempo onde os rostos quase não desgrudam das telas de celulares e tablets. Inevitável pensar que Maysles encontra em Apfel um espelho de sua própria relação com mundo, o edifício geminado cujo maior gesto de resistência da alma invadida pela felicidade de existir é sobreviver à própria decadência do corpo, que não interrompe seu processo de corrosão e declínio. Colecionadores de roupa, acessórios e arte, mas também de pessoas, experiências, de momentos extraordinários e lembranças,  Iris Apfel e Albert Maysles nos permitem vislumbrar, graciosa e deliciosamente, que o gesto de colecionar, seja uma imagem ou um quimono japonês, envolve estar em contato, trocar, conhecer gente. Estar na vida.

Patricia Rebello


A TRAVESSIA

O documentário era melhor. Essa é uma apreciação a que A Travessia parece fadado. Vencedor do Oscar de docs em 2009, O Equilibrista, de James Marsh, já recorria a vinhetas dramatizadas para dar tom de thriller à façanha de Philippe Petit. Na outra ponta da corda, A Travessia usa um recurso típico de documentários ao colocar o personagem narrando sua própria história – e reiterando tudo o que sentiu – do alto da Estátua da Liberdade. Enquanto o primeiro era um louvor ao espírito aventureiro e empreendedor de um homem, este agora adquire tonalidades de canto cívico às Torres Gêmeas e a Nova York.

A produção esmera-se na reconstituição das obras de acabamento dos prédios, em 1974, e nas sequências iniciais ambientadas numa Paris de puro regozijo e frescor. A nostalgia é sempre uma boa estratégia de imersão. Mas a partir do encontro de Petit (Joseph Gordon-Levitt) com seu orientador tcheco (Ben Kingsley), o filme se banaliza bastante ao tentar conciliar clichês de diversos gêneros: romance, comédia de trapalhadas, thriller de assalto e drama siga-o-seu-sonho. Na busca de um entretenimento sem tréguas, nem tudo funciona a contento, e Robert Zemeckis parece se equilibrar numa corda meio frouxa.

Os pontos altos (em muitos sentidos) são, naturalmente, as cenas sobre o fio. A metáfora da passagem do tempo com os pés de Petit caminhando sobre um número decrescente de cordas da infância à mocidade é um momento inspirado. As oito travessias sucessivas sobre o vão do WTC, em que o 3D proporciona uma impressão de vertigem quase física, é o que certamente ficará na memória de todo espectador. Mas o que A Travessia oferece em termos de visualização subtrai em matéria de delicadeza e poesia. Se Petit era tão chato quanto a personagem de Gordon-Levitt, melhor seria vê-lo de longe, no alto dos prédios. Para uma abordagem menos banal e mais excitante de sua aventura, é melhor voltar ao documentário.


LA ISLA MÍNIMA
(Recuso-me a usar o absurdo título brasileiro “Pecados Antigos, Longas Sombras”)

Em 1980 a Espanha estava engatinhando na democracia, mas os fluidos do franquismo ainda estavam densos no ar. Esse cenário político é um tênue pano de fundo para o filme de Alberto Rodríguez, premiadíssimo na Espanha no ano passado, inclusive com dez Goyas. Alguns grafites e notícias na TV dão conta dos riscos de recrudescimento, enquanto um dos personagens centrais deixa seu passado de torturador transparecer no ofício atual. Ele é um dos dois detetives designados para investigar o desaparecimento de duas irmãs nos pântanos de Guadalquivir, um labirinto de rio e charcos na Andaluzia.

A dupla demonstra um extraordinário talento para ser surpreendida pelo vilões que estão tocaiando. Com pouco trabalho de roteiro, poderiam se transformar em policiais trapalhões de comédia. Mas seu trabalho será facilitado por uma sucessão de chavões das histórias de serial killer: pistas encontradas com notável facilidade, colaboradores que confessam tudo à primeira ameaça ou chantagem emocional, suspeitos descuidados com seus movimentos na amplidão escancarada do lugar.

A doença aparentemente grave que afeta um dos policiais, o vínculo do outro com a família distante e a relação dos crimes com o tráfico de drogas são alguns dos ingredientes que ficam perdidos na trama, como se estivessem ali somente para tornar o labirinto aparentemente mais intrincado. Não compreendo a grande admiração em torno de um filme que, apesar da empostação das cenas e da boa fatura artesanal, é no fundo completamente rotineiro e às vezes bastante implausível.

3 comentários sobre “Festival do Rio 2015

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