A plataforma Belas Artes à la Carte inicia hoje a mostra Volta ao Mundo – Espanha com 12 filmes que vão desde grandes clássicos a cults modernos e inéditos nos cinemas brasileiros, além de premiadas coproduções com outros países, como Argentina, França e Itália.
A programação tem filmes consagrados de Luis Buñuel (Viridiana), Carlos Saura (Cria Cuervos), Victor Erice (O Espírito da Colmeia), Julio Medem (Vacas), Luis García Berlanga (Bem-vindo Senhor Marshall) e Juan José Campanella (O Segredo dos seus Olhos). Menos divulgados no Brasil são A Língua das Mariposas, de José Luis Cuerda, Joana, a Louca, de Vicente Aranda, Pelos meus Olhos, de Iciar Bollaín e Viver é Fácil com os Olhos Fechados, de David Trueba. Completam a programação os inéditos Maria (e os outros), de Nely Reguera e Saura(s), de Félix Viscarret.
Este último é um documentário sobre Carlos Saura, que comento a seguir.
Saura e os filhos
Num dado momento de Saura(s), a atriz Eulália Ramón, mulher de Carlos Saura, abre um armário onde estão guardados muitos pacotes de fotografias e memorabilia familiar do marido. Ele resiste, pede que ela feche o armário e deixe o passado de lado. A cena ilustra bem a dificuldade do diretor Félix Viscarret para compor o retrato íntimo que pretendia do grande cineasta espanhol, então completando 85 anos. Uma dificuldade que, afinal, acaba sendo o próprio dispositivo do filme.
A ideia de trazer os sete filhos de Saura (de quatro casamentos) para conversar com o pai começou frustrada pela não participação de Shane, fruto da relação de Saura com Geraldine Chaplin, que mora nos EUA. Dois deles são tímidos demais para entabular uma charla mais produtiva. Os que melhor aproveitam a oportunidade são os dois mais velhos e Anna, a caçula. Com eles, Saura aos poucos deixa quebrar sua casca de rigidez e abrir uma fresta para a vida pessoal.
Daí podemos inferir algumas conclusões que o pudor de todos, afinal, deixa escapar. Embora alguns filhos neguem, Saura não consegue desmentir sua fama de homem frio e voltado quase exclusivamente para o trabalho – aí incluindo fotos, desenhos, pinturas, trabalhos manuais e, eventualmente, filmes. As queixas de ausência paterna advêm ora nas entrelinhas, ora explicitamente, em especial na difícil conversa com Eulália, que o diretor teve que inserir a pedido de Saura, embora fugisse do seu plano inicial de trabalhar só com os filhos.
Percebe-se também que a imensa reputação do pai pesou sobre os filhos. Quase todos trabalham no ramo audiovisual, mas nenhum se projetou individualmente, ficando à sombra larga do pai.
Que não se espere um olhar retrospectivo sobre a filmografia do diretor de Ana e os Lobos, Elisa Vida Mia, Cria Cuervos, Bodas de Sangue, etc. As referências são esparsas e descontextualizadas. As poucas cenas de filmes que aparecem, junto com muitas fotografias da família, servem principalmente para criar relações tênues entre o cinema e a vida conjugal de Saura.
Quase todo esse material é apresentado com função cenográfica em telões diante dos quais o cineasta e os filhos trocam lembranças. A inspiração no estilo de Saura em seus filmes de dança é evidente, com projeções, transparências, telas de cores fortes e a equipe revelada dentro da cena. Félix Viscarret se faz também ele personagem, tendo que lidar com os impasses do projeto e driblar a resistência do personagem a se voltar para o passado e para a esfera pessoal. “Uma tortura”, é como Saura define o processo do documentário.
Essa postura bem pode ter sido uma escolha deliberada, uma mentira de Saura para compor um personagem apenas parecido consigo mesmo. Seja como for, Sauras(s) nos chega como um filme relativamente frustrado, mas que tenta tirar o melhor possível dessa frustração.