Transgênero sem rosto no Irã

O cinema iraniano surpreende mais uma vez com Na Prisão Evin (Amen), uma visita muito incomum ao tema de transgênero. O Irã é notoriamente liberal no trato do assunto, com muitas clínicas especializadas na cirurgia de redesignação de gênero e até apoio governamental à prática como forma de reduzir a homossexualidade.

O filme de Mehdi e Mohammad Torab-Beigi é protagonizado por Amen (ex-Amin), uma jovem do interior que já sofreu violências e tentou em vão emigrar. Em Teerã, uma conhecida (Shabnam Dadkhah) a apresenta a Naser (Mahdi Pakdel) homem rico que se dispõe a custear sua cirurgia em troca de um favor. Ela deve fingir ser a sua filha perante a avó deficiente visual para que ele não perca uma mansão de herança. Amen se deixa seduzir pela proposta, mas se vê prisioneira da casa de Naser e de um plano bem mais sinistro que tem a ver com o destino da menina ausente.

Nas vizinhanças do thriller de terror, ambientado em meio a mobiliário chique e peças de arte contemporânea, Na Prisão Evin se destaca também pelo dispositivo ousado de mostrar tudo pelo ponto de vista subjetivo de Amen, sem que seu rosto nunca apareça. Dela temos apenas a voz, as mãos e os pés quando vistos pelos seus olhos.

A indefinição visual da personagem não se explica por nenhum tabu islâmico (como a não representação imagética de Allah ou de Maomé), mas pela identidade intermediária em que ela se encontra. Da mesma forma, a ideia de uma prisão – agravada gradativamente ao longo do filme – exprime a condenação de Amen a sua forma física e a sua classe social.

Os simbolismos se acumulam de maneira um tanto óbvia, como na metáfora da transformação e aprisionamento da borboleta e na única aparição de Amen de corpo inteiro diante de um espelho estilhaçado (foto). De resto, o roteiro evolui semeando estranhezas e um processo insólito de negociação que envereda pelo trágico.

>> Na Prisão Evin está na plataforma Mostra Play.