De Recife a Cotiporã

O que pode haver em comum entre o curta Recife Frio e o longa Morro do Céu, reunidos no lançamento da Sessão Vitrine esta semana, além de serem dois dos melhores filmes realizados no Brasil nos últimos anos?

Recife Frio

Não muita coisa, certamente. O fenômeno atmosférico que congela a Recife imaginada por Kleber Mendonça Filho nem chega a aproximá-la do sul ensolarado que Gustavo Spolidoro capturou. Recife Frio (foto à esquerda) é um falso documentário supostamente rodado por uma equipe da TV argentina, e usa o código da sátira para falar de coisas graves como a desumanização das cidades e o jequismo do consumo cultural de massa. Morro do Céu, por sua vez, faz do cinema de observação radical uma ferramenta para plasmar um modo de vida interiorano e bucólico.

O que esses dois filmes têm mesmo em comum é o fato de consagrarem dois diretores companheiros de geração e cujas carreiras, iniciadas nos anos 1990, exprimem um desejo contínuo de aprimoramento, experimentação e comunicabilidade. Kleber, dublê de crítico e realizador, fez curtas originais como Vinil Verde e Eletrodoméstica, além do longa Crítico. Gustavo tem curtas premiadíssimos como Velinhas e De Volta ao Quarto 666, mais o virtuosístico longa em plano-sequência Ainda Orangotangos. Recife Frio e Morro do Céu são suas respectivas obras-primas até o momento. Neles, o domínio de modelos narrativos é excepcional.

Morro do Céu

Morro do Céu (foto à esquerda) observa o cotidiano do “guri” Bruno Storti na pequena Cotiporã, colônia de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Bruno passeia com os amigos pelos arredores, tenta capturar a atenção de uma menina com mensagens pelo rádio e o celular, trabalha na lavoura da família, restaura uma moto, conversa com os pais sobre o futuro e a Itália. As ações são fragmentadas, mas a edição vai formando linhas de continuidade que sugerem um fluxo dramático ficcional. Tudo respira singeleza, calma e intimidade, numa paisagem montanhosa e verdejante que ajuda a contextualizar as sensações experimentadas por Bruno. A introspecção do menino é um dado que o diretor utiliza a seu favor. Ele monta o filme no diapasão do personagem, em vez de forçar uma “expressividade” artificial que fosse mais propícia a uma suposta economia narrativa.

Durante quatro meses de filmagem, Gustavo Spolidoro trabalhou praticamente sozinho, fazendo imagem e som. A câmera, quase sempre fixa no tripé, colhe cenas espontâneas no figurino ideal do cinema direto americano, como uma mosca na parede. Mas esta é uma mosca caprichosa, atenta à beleza das composições e à eloquência da luz.

Nada mais distante desse naturalismo minuciosamente burilado do que o jorro de ideias mordazes presente em Recife Frio. Como em A Menina do Algodão e Vinil Verde, Kleber trabalha entre o carinho e a ironia para com os gêneros cinematográficos. Neste caso, a ficção científica e o mockumentary, ou pseudo-documentário, tirando sarro com a linguagem da televisão e provocando um riso crítico e fecundo. Mesmo para quem não conhece as vicissitudes da capital pernambucana, ou não percebe em toda sua extensão a bela homenagem final a Lia de Itamaracá e ao clássico neorrealista Milagre em Milão, o filme tem apelo imediato e ressonância em qualquer um. Estou longe de ser o único a considerar Recife Frio o melhor curta feito no Brasil desde Ilha das Flores.

>>> O programa duplo fica em cartaz até quinta-feira próxima no Cine Joia (Rio), na sessão das 20h30. Clique aqui para ver a programação em outras cidades.

Abaixo, o trailer de Morro do Céu:

Um comentário sobre “De Recife a Cotiporã

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