A leitura de um livro tem me tirado o sono. Trata-se de O FUTURO CHEGOU, do sociólogo italiano Domenico de Masi (autor de “O Ócio Criativo”). Ele analisa 15 modelos de vida testados em diferentes épocas e regiões do mundo: os orientais, o clássico greco-romano, o católico, o hebraico, o muçulmano, o protestante, o iluminista, o liberal, os industriais capitalista, socialista e comunista, o pós-industrial e por fim o brasileiro. Sem intenções historiográficas, de Masi apenas expõe os princípios de cada modelo, relacionando religião, modo de vida e estruturas de pensamento. Não dou muita atenção ao tom de auto-ajuda para o mundo com que conclui cada segmento. Retenho somente a articulação cristalina de informações e o estilo fascinante de descrever cada sociedade. O livro é um catatau de quase 800 páginas, que estou lendo com a voracidade de faminto num banquete. Mas estou cometendo um erro terrível. Esse não é um livro para se ler no fim do dia, antes de dormir. Depois que fecho o volume, os trechos que marquei com a caneta ficam cintilando na memória como fogos de artifício na noite escura. Não consigo conciliar o sono, tamanha é a minha excitação do espírito. Tenho que atravessar logo esse grande rio, não só porque serei alguém melhor quando chegar do outro lado, mas porque preciso fazer as pazes com o repouso das madrugadas.
O melhor de GAROTA EXEMPLAR é o que ele, teoricamente, teria de pior: a trama rocambolesca demais, o grande número de “viradas” estapafúrdias, a balbúrdia psicológica que leva os personagens a caminhos tão tortuosos. Acontece que cada filme tem seu código, e o de “Gone Girl” é assumir os exageros numa narrativa que começa banal e não para de caminhar rumo ao absurdo, embora sem nunca chegar lá de verdade. O controle de David Fincher sobre o material é absoluto, fazendo com que cada surpresa seja logo “naturalizada” pela insanidade básica de toda a trama. É um filme sobre a paranoia conjugal, o apego às aparências e a voracidade da mídia. Os homens são o sexo frágil justamente por se guiarem pelo instinto sexual, enquanto às mulheres cabe o papel típico dos policiais misóginos. Tudo muito trash, sem dúvida, mas servido em embalagem de luxo, com a habitual fotografia cheia de sombras e os diálogos rápidos e histriônicos que caracterizam os filmes de Fincher. No fim das contas, uma maluquice competente e deliciosa de acompanhar, principalmente se mantemos um olho no mistério e outro na comédia.
Thrillers de espionagem, se não dotados de alguma potência cinematográfica especial, tendem hoje a parecer telefilmes rotineiros. É o que acontece com O HOMEM MAIS PROCURADO, que aborda os bastidores da guerra ao terror em Hamburgo. Um imigrante ilegal checheno, a chave de um cofre bancário, um agente secreto tentando fazer um serviço decente, uma advogada de direitos humanos e um atravessador de ajuda humanitária a comunidades islâmicas se cruzam numa trama de muitos diálogos, pouca ação e quase nenhuma grande surpresa. John Le Carré, autor do romance original, costuma enfatizar os quebra-cabeças cerebrais envolvendo moral pessoal e política global. Aqui não é diferente. Há questões entre pais e filhos, entre passado e presente de várias pessoas e um personagem central potencialmente intrigante, exemplarmente vivido por Philip Seymour Hoffman em uma de suas últimas atuações antes de morrer de overdose. Mas a direção convencional de Anton Corbijn não consegue explorar a contento esses meandros. O filme resulta um tanto frio e excessivamente baseado em clichês do gênero (espreitadores que nunca são notados pelos seus alvos, escutas que nunca dão ruído ou falham, gente suspeita que não toma cuidados mínimos com sua segurança). A retórica dos serviços secretos sobre “fazer do mundo um lugar mais seguro” merecia um olhar e uma crítica mais agudos do que isso.
ATTILA MARCEL me pareceu um desses animadores de festa infantil que fazem de tudo para entreter a garotada mas a única coisa que conseguem é aborrecer os adultos. Sylvain Chomet, vindo da animação para esse primeiro longa live action, traz o gosto pela gag visual, o uso intensivo das cores (vivas no passado, sóbrias no presente) e a atmosfera de fábula. No entanto, nem tudo o que funciona bem no mundo paralelo da animação chega em boa forma à ação no plano físico. A história do jovem pianista órfão, criado e mimado por duas tias solteironas, que entra numa estranha terapia para conhecer a verdade sobre seus pais e assim recuperar a fala se perde num emaranhado de subplots e num desfile de excentricidades que pouco dialogam uma com a outra. Bernadette Lafont, em seu último papel no cinema, faz com Hélène Vincent uma dupla caricata que até caberia numa animação como “As Bicicletas de Belleville” (a obra-prima de Chomet), mas em carne e osso resulta vexatória. Tampouco vi qualidades especiais na atuação de Guillaume Gouix como o abúlico Paul. A trilha sonora é efusiva e ajuda a gerar alguma simpatia eventual, exceto quando é interpretada por uma insuportável banda de músicos vestidos de sapos. As madeleines de Proust, as conexões inconscientes de Freud e o non-sense de Jeunet e Caro se esbarram numa pororoca mais exaustiva do que divertida.
Antes de fazer “Mommy”, exibido no último Festival do Rio, Xavier Dolan realizou TOM À LA FERME (Tom na Fazenda), baseado numa peça teatral de Michel Marc Bouchard. O argumento é fascinante e, em princípio, se amolda à temática habitual do diretor, que é a relação difícil entre mães e filhos. Tom (vivido por Dolan) está abatido com a morte do companheiro e vai à fazenda da família dele para o funeral. Lá descobre não só que a mãe do rapaz nada sabia da escolha sexual do filho, mas também que ele próprio desconhecia coisas importantes sobre o companheiro. A começar pela existência de um irmão, Francis, que vai estabelecer com ele uma relação ambígua de dominação e dependência. Gradativamente o filme coloca o espectador numa densa zona de sombra, num estranho jogo de homofobia, sadomasoquismo e estratégias de desmascaramento, em que o lugar de cada personagem é seguidamente questionado – inclusive o de uma colega de trabalho que vai entrar no terceiro ato da trama. Dolan fez um filme bem mais sóbrio que a sua média, usando pouco da sua retórica estilística habitual e explorando bem o suspense (trechos da trilha sonora de Gabriel Yared emulam Bernard Herrmann). O que desagrada é o costumeiro desleixo de Dolan com a verossimilhança em momentos cruciais de seus filmes. Sobretudo nesse, que depende de muita ação psicológica e física, alguns comportamentos inexplicáveis são furos de roteiro difíceis de perdoar.