Martírio retraça as origens do cerco físico e cultural dos Guarani-Kaiowá desde o pós-Guerra do Paraguai.
Em paralelo a seu trabalho de capacitação audiovisual dos índios na ONG Vídeo nas Aldeias e à produção de filmes como O Mestre e o Divino, Vincent Carelli desenvolve os seus próprios registros e investigações sobre a questão indígena no Brasil. É um trabalho de formiga, que o faz deslocar-se aos quatro cantos do país em busca de histórias, imagens e provas da expropriação de terras e do extermínio dos povos originários. Em Corumbiara (2009), tivemos acesso a uma amostra dessa empreitada – uma contundente e minuciosa comprovação do massacre de índios por fazendeiros na gleba Corumbiara, em Rondônia.
Martírio tem igual potência de denúncia, desta vez em relação à luta dos Guarani-Kaiowá pela reconquista de seus “tekohás” (territórios) ocupados pelo agronegócio. Em companhia dos antropólogos Celso Aoki e Myriam Aoki, Carelli havia documentado o início do movimento de retomada dos Guarani-Kaiowá em fins da década de 1980. Desde então, a tribo espalhada por diminutas reservas no Mato Grosso do Sul vem resistindo aos ataques de fazendeiros e ocupando pedaços de terra que antes lhes pertenciam e onde têm enterrados seus mortos. Alguns se instalam por anos em tendas miseráveis à beira de estradas na expectativa de retomar seu “tekohá”.
O cineasta decidiu retornar ao assunto depois do assassinato e desaparecimento do corpo de Nísio Gomes, líder de um acampamento de retomada, em 2011. Martírio, codirigido por Ernesto de Carvalho e Tita, se organiza basicamente em torno desses dois tempos: o começo do movimento e os enfrentamentos mais recentes, no campo e no Congresso Nacional.
A bem dizer, o dossiê vai mais longe que isso. Assumindo-se como narrador-historiador, Carelli retraça as origens do cerco físico e cultural dos Guarani-Kaiowá desde o pós-Guerra do Paraguai. A incorporação de parte do Paraguai ao território brasileiro criou essa pororoca étnica que faz a tribo se expressar num misto de guarani, português e espanhol. Gerou também um sentimento de xenofobia em relação a esses “índios estrangeiros”.
O Serviço de Proteção aos Índios, do Marechal Rondon, também foi instrumental para subtrair a identidade e as terras dos índios em troca de integração e reservas exíguas. As agressões continuaram com Vargas e seu expansionismo para o Oeste, que despejou comunidades e explorou à exaustão a mão de obra indígena. Tão ou mais chocante ainda foi o aparelhamento da infame Guarda Rural Indígena durante a ditadura civil-militar, quando índios vestiam fardas e eram treinados para reprimir e denunciar seus iguais. Por sinal, um bom complemento para Martírio é o curta Reformatório Krenak , de Rogério Corrêa, que detalha o aberrante presídio indígena montado em Minas Gerais , entre 1969 e 1972.
A abordagem se conclui com as pressões da bancada ruralista que levaram o governo Dilma a capitular numa demarcação mais efetiva das terras indígenas. O crescimento das ocupações de fazendas e do plenário do Congresso colocou os Guarani-Kaiowá na mira também da Polícia Federal. Numa cena, um agente da PF ameaça indiretamente os ocupantes com a garantia de que, se eles saíssem dali, não iriam morrer.
Martírio abre espaço para longos trechos de debate no Congresso, de modo a situar os argumentos preconceituosos e xenófobos que inspiram os ruralistas. Uma estrela dessa bancada era a senadora (e depois ministra) Kátia Abreu, cujo pedido de “paz” na tribuna ecoa significativamente sobre a entrada do título do filme: “Martírio”. A “paz” requerida pelos fazendeiros seria a rendição completa dos índios, a aceitação do martírio como destino inevitável da marcha para o desenvolvimento.
No contracampo da política institucional, Vincent Carelli sai em busca da razão miúda dos índios. Numa caminhada comovente, segue um jovem guarani pela selva até as sepulturas dos parentes que já morreram pelas balas dos jagunços. Aponta a câmera para os furos de bala numa área ocupada. Resgata a história verdadeira de um vídeo divulgado em Brasília onde se vê um jagunço sendo justiçado por índios. Flagra a confissão de um trabalhador sobre a virtual impunidade das empresas de segurança particular contratadas para matar índios. Ouve velhos e jovens indígenas defenderem suas razões materiais e espirituais para seguirem na luta pelas retomadas que faltam.
Sem qualquer estardalhaço, fica patente a profunda parceria de Carelli com os índios, seja através da palavra, seja da possibilitação de uma imagem que lhes seja própria. Uma câmera deixada num acampamento, por exemplo, vai registrar um ataque de jagunços armados de revólveres. Em alguns momentos, o diretor sai da sua posição de narrador-historiador para inserir-se claramente na causa. Numa cena, ele entra no quadro para explicar que não tem autoridade para solucionar problemas, mas está unido na luta coletiva dos Guarani-Kaiowá. Em outra passagem, confessa que parou o carro na estrada para chorar de emoção “pelo carinho com que (os índios) tratam seus aliados”.
Para além do dilacerante painel que descreve, sem omitir a complexidade do assunto, Martírio tem a beleza de um cinema da solidariedade.
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