Ainda não pude ver o elogiado “As Maravilhas”, mas assisti agora ao primeiro filme de Alice Rohrwacher, CORPO CELESTE, e fiquei ainda mais interessado pelo trabalho da diretora italiana. Ela tem uma mão ao mesmo tempo delicada e firme para conduzir sua observação de uma comunidade sufocada pelo fundamentalismo católico, a hipocrisia religiosa e as paranoias ambientais. Tudo é visto a partir das experiências de uma menina que chega a uma cidade média italiana, vinda da Suíça, e passa a conviver com essa nova realidade enquanto atravessa os ritos da puberdade. A bondade natural da pequena Marta (Yle Vianello, em atuação muito espontânea e expressiva) contrasta com a desumanidade e a corrupção dos representantes das instituições locais. Uma professora de catecismo, apropriadamente chamada Santa, encarna o autoritarismo e as pulsões sexuais de uma típica carola de província. Há um quê de felliniano na visão do clero e em cenas como o crucifixo em tamanho natural sendo transportado no teto de um carro, ou ainda no final metafórico sobre os verdadeiros milagres da vida, que lembra a última sequência de “A Doce Vida”. Não é um filme perfeito, haja vista algumas redundâncias e uma ponta de caricatura nas aulas de catecismo, ou mesmo a superficialidade com que são desenhados os familiares de Marta. Ainda assim, intriga e diverte na boa tradição crítica do cinema italiano. Jul 2015
Por analogia temática, em seguida a “Corpo Celeste” encarei o documentário DELIVER US FROM EVIL (Livrai-nos do Mal), que concorreu ao Oscar em 2007. Mesmo com tudo o que desde então se expôs sobre pedofilia no clero, fiquei impressionado com os detalhes do caso do padre Oliver O’Grady, que molestou dezenas de crianças – incluindo um bebê de nove meses – em diversas paróquias da Califórnia nos anos 1970. Para chegar aos filhos, O’Grady não hesitava em seduzir primeiro os pais, até mesmo sexualmente, e ganhar deles a inteira confiança. Tão impactante quanto os fatos narrados e a dor das vítimas e suas famílias é a fria disposição do próprio O’Grady para, tendo cumprido já uma pena, participar diretamente do filme, chegando à beira do cinismo no pretexto de fazer daquilo uma confissão de culpa. A diretora Amy Berg foi bastante corajosa ao reunir evidências e testemunhos para devassar a corrupção em vários níveis da Igreja Católica, culminando com uma acusação direta ao então Papa Bento XVI de colaborar com o acobertamento dos abusos sexuais cometidos por milhares de padres ao redor do mundo. Brilhantemente narrado, ainda que em moldes convencionais, esse doc concorreu ao Oscar com “Jesus Camp”, denúncia poderosa da lavagem cerebral de crianças pelo fundamentalismo católico nos EUA. Ambos perderam para o tema do meio-ambiente, com “Uma Verdade Inconveniente”. Quanto a O’Grady, depois de 2007, deportado para a natal Irlanda, viria a ser preso novamente por posse de pornografia infantil. E a brava Amy Berg acaba de estrear “An Open Secret”, um novo exposé de abuso de menores, dessa vez na indústria de Hollywood.