Na segunda metade do século passado, creio que não havia um astro ou estrela da MPB que não quisesse tirar uma casquinha de Os Cariocas: cantar com eles, compor para eles ou mesmo “ser” um deles, ainda que só de brincadeira. Essa imensa rede de parcerias, colaborações, admirações e influências é o que Lúcia Veríssimo recosturou em Eu, Meu Pai e Os Cariocas – 70 Anos de Música no Brasil.
O quinteto, depois quarteto, esteve no centro da Bossa Nova, dos seus antecedentes e dos seus desdobramentos. O filme reconta essa história com riqueza de detalhes e também se ocupa de exemplificar musicalmente a personalidade do grupo. Os “chururus” enredantes, os arranjos vocais redondinhos mas tonalmente surpreendentes, os falsetes característicos, os arranjos empolgantes de Severino Filho fora do grupo, tudo recebe a devida atenção. Os Cariocas foram mesmo “o som do Rio” nos anos 1960, especialmente daquele Rio sedutor que ia “do Leme até o Leblon” e que aparece em abundância nas cenas de arquivo pesquisadas por Antonio Venancio.
A montagem de Letícia Giffoni leva quase ao paroxismo o modelo de falas em cadeia, fazendo com que uma infinidade de entrevistados se complementem uns aos outros ao narrar ou comentar a saga de Os Cariocas. O mesmo é feito com relação às canções, que saltam de voz em voz e se articulam com o momento presente numa edição de ritmo contagiante. Particularmente certeiras são a evocação da morte precoce de Ismael Netto ao som de Milton Nascimento vocalizando Canção da Volta e a montagem dos comentários de Martinho da Villa e Maria Alcina sobre os arranjos, respectivamente, de Disritmia e Fio Maravilha. Talvez haja um pouco de redundância na meia-hora final, mas é tudo sempre tão simpático que não dá para reclamar.
O que compromete um pouco essa simpatia é a participação pouco modesta de Lúcia Veríssimo, já a partir do título, em que ela se coloca à frente do próprio tema do filme. Filha e sobrinha de três integrantes do grupo, Lúcia de fato cresceu no meio de tudo aquilo, e seu carinho pelo assunto é mais do que sincero. Mas a sua narração em tom glorioso, começando por desfiar elogios à família e reservando para si mesma um protagonismo exagerado (“eu tinha herdado o sangue quente revolucionário”), ultrapassa a linha da moderação.
Fechando os olhos e ouvidos para esse aspecto, há muito com que se deliciar no documentário. Há a boa preocupação de contextualizar a era de ouro da Rádio Nacional, o ambiente bossanovista, o impacto da ditadura sobre a MPB (que afastou Os Cariocas da cena por 20 anos), a entrada da televisão no mercado da música e o indiscutível empobrecimento do panorama musical nos últimos tempos (reconhecido até pelo Boni!). E não há como não sair do cinema querendo ouvir de novo, e muito, o canto apurado e volátil dos rapazes.
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Adorei. Lindo lindo lindo. Só que chorei de muita saudade!! Das músicas dos Cariocas e do Rio de Janeiro. Mas é uma saudade de coisas q me alimentam até hoje. Que bom! Vivi nesse tempo! Tive e tenho muita sorte!!
Ótimo, Flavia. Agradeço o feedback. Um abraço.