Estética Maquinal, por Hernani Heffner

Hernani Heffner, emérito professor de cinema e conservador-chefe da Cinemateca do MAM, fez a curadoria da exposição “Galáxia(s) do Cinema”, que abriu sábado passado no Museu de Arte Moderna do Rio. São inúmeras as preciosidades expostas, entre as quais equipamentos usados em clássicos do cinema brasileiro e por Orson Welles no Brasil. A partir do dia 12 de setembro, Hernani fará visitas guiadas todas as quartas-feiras às 16h.

O blog reproduz aqui um dos textos que ele escreveu a propósito da exposição:

Hernani Heffner no recinto da exposição. Foto: Eduardo Costa

ESTÉTICA MAQUINAL

por Hernani Heffner

“O que caracteriza um cineasta são os meios que ele usa” (Eric Rohmer)

As exposições de tecnologia são raras no Brasil. As exposições de tecnologia cinematográfica são ainda mais esparsas. Salvo a iniciativa pioneira e efêmera de Jurandyr Noronha, que montou um Museu do Cinema em 1970, apenas mais algumas coleções de caráter público se formaram, como as do Museu de Cinema Antônio Vituzzo, do Cine Memória, criado por Vladimir Carvalho, e do Museu da Imagem e do Som de Camboriú, iniciativa de Fernando Delatorre. As milhares de peças reunidas ganham um complemento significativo na iniciativa de dezenas de colecionadores particulares. Mas ainda são de certa maneira invisíveis para o público.

A Coleção da Cinemateca do MAM, apresentada parcialmente nesta exposição e complementada com peças vindas de outros acervos, é em certa medida herdeira do conjunto original coletado por Noronha. Neste sentido espelha uma visão evolutiva da cinematografia brasileira, destacando seus instrumentos de criação mais decisivos, singulares ou persistentes. Sem encobrir a relação umbilical entre a obra fílmica e os equipamentos, insumos e materiais que a compuseram, além dos artistas que as utilizaram, modificaram ou reinventaram, Galáxia(s) do Cinema procura lançar um olhar mais amplo sobre as peças e documentos que compõem não só a criação como a vivência do cinema. Põe em relevo também a inserção dessa tecnologia particular no contexto moderno e taylorista, com suas padronizações, interdependências e utilitarismos, e no horizonte digital que passou a nos rodear.

Certamente uma câmara Arri 35, modelo IIC, como objeto industrial seriado, pode ser encontrado em muitos outros acervos, sem qualquer variação maior. O que a destaca quase sempre é a associação com alguma obra importante ou uso inovador para além de seus atributos de base. Mas são justamente estes atributos que devem ser considerados mais fortemente nesta exposição. Toda tecnologia tem um fundamento primordial, um modus operandi particular, um design específico, uma ergonomia funcional, uma aplicação direta, gera sentimentos de potência e mistério e carrega uma poesia oculta. Produzir captura, fixação ou reprodução do movimento visual ou sonoro, entre outros objetivos, não deve ser considerado um aspecto menor ou inerente. Ao contrário do que se pensa, os equipamentos sempre extravasam de sua funcionalidade imediata para o coração e o inconsciente do mundo tecnológico de determinada época.

A era industrial, da qual o cinema foi um representante maior, pode ser percebida aparentemente como um tempo de máquinas mecânicas – associadas a técnicas físicas, óticas, químicas, de engenharia e arquitetura –, moldadas principalmente no metal duro, frio, “feio”. Mas o que é o sistema de elementos mecânicos internos? Mero conjunto de peças em movimento e que produzem movimento? Engrenagens são também algo mais abstrato: rotações, giros, torques, ciclos, interconexões, ritmos, formas, processos, transmissões, tropos, metáforas, imagens conceituais do Moderno. Engrenagens que performam o mesmo movimento circular, como quase tudo em cinema, em verdade são cíclicas, estáveis, repetitivas; não progridem. A aspiração moderna, porém, era estar em movimento contínuo, sustentável, vigoroso, como queriam as vanguardas históricas. Utopicamente em moto-perpétuo, termo cuja tradução em russo é Dziga Vertov, nome artístico escolhido por David/Denis Kaufman. O cinema precisou pensar sua natureza  desde muito cedo para impor-se como arte, a mais tecnológica de todas.

Herdeiro da revolução científica burguesa, o primeiro padrão-cinema, a tecnologia foto-química – seguiu-se a magnética, mais associada à televisão, e a algorítmica –, durou cerca de 120 anos, com variações e nuances expressivas. Endereçadas a um futuro utópico e redentor, as máquinas modernas à engrenagem, entre elas câmaras, projetores, mesas de montagem e gravadores, mantiveram o status-quo e mantiveram-se imutáveis em sua essência, a despeito da adição de motores, válvulas, transistores e circuitos. O corte veio com a revolução algorítmica, com o computador, com a informática. Tecnologia eletro-eletrônica que virtualiza mundos, o dígito em suas quase infinitas possibilidades combinatórias instrumentaliza a máquina. Em vez de operação, processamento. Em vez de transmissão, permanência latente. Em vez da estabilidade, evanescência. A corrente elétrica não alimenta mais engrenagens, apenas pulsos organizados por uma “mãe” controladora. A “robotização” sempre foi o maior temor imaginário da era industrial, como o cérebro computacional o é da era pós-moderna.

O cinema digital admite variações e nuances? Sim, mas de modo muito sutil ainda e mais do que nunca associado às escolhas tecnológicas. Os sinais digitais são abstratos (intocáveis), discretos (descontínuos), randômicos (aleatórios) e uniformes (padronizados), mas podem ser diferentes em suas configurações. A racionalização e a serialização monocórdicas ambicionadas pelo capitalismo contemporâneo não se realizaram de todo. Antes propostas como analogias da natureza e como extensões dos corpos humanos, as máquinas, agora digitais, tornaram-se parcialmente independentes, e tentam se antecipar aos desejos de seus usuários e proprietários. Se querem como puros autômatos e como oráculos incontestáveis, além de atraentes e “amigáveis”. Nada mais de madeira e metal, matérias-primas tipicamente modernas, substituídas principalmente por plásticos, fibras, reciclados e sintéticos em geral. Elementos “frios”, sem condutividade, pulsão ou vibração. Não é uma oposição ou antagonismo mas uma percepção, aprendizado, performance diversa. Mais do que nunca cabe à arte, ao pensamento livre e à emoção sincera ultrapassar as superfícies, em busca do âmago (ou falta de) das coisas. Não olhar as máquinas em suas variadas modalidades como meros instrumentos, aparelhos, peças. O cinema como máquina das máquinas, como preconizou Roger Bacon, foi feito para a especulação, não apenas para o mero uso prático.

As tecnologias aqui expostas – maquinais, corpóreas, impressas, luminosas, sonoras, materiais –, além dos elementos artísticos que com elas dialogam – filmes, pinturas, fotografias, esculturas, objetos cinéticos –, tentam revelar não só um percurso artístico, uma cadeia produtiva, uma geografia de trabalho mutante e intercambiável, inclusive historicamente, mas também as qualidades inerentes a cada objeto tecnológico e documentos associados. Contemplá-los, inquiri-los, explorá-los é uma forma possível de aceder ao cinema em suas múltiplas metamorfoses, ao espírito moderno e ao contemporâneo, e ao contato mesmo com a tecnologia, as mais imediatas e as mais “ocultas”, em seus sentidos e alcance, beleza e terror, ação e resultado, conceito e preconceito, sentimento. Considere este espaço expositivo um grande estúdio, ou como um grande almoxarifado. Pense e repense os itinerários, as combinatórias, as performances possíveis. Como afirma o diretor de fotografia Vittorio Storaro: “O cinema é incontestavelmente uma mistura de arte e tecnologia”.

Galáxia(s) do Cinema é um trabalho de reconhecimento e homenagem àquele que primeiro se apaixonou pelas máquinas cinematográficas: Jurandyr Noronha.

Hernani Heffner, curador

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