Documentar é uma fábula

Um ciclo de debates e um novo livro enfocam os hibridismos entre documentário e ficção 

Os diálogos e miscigenações entre documentário e ficção têm sido tema obsessivo dos debates cinéfilos, críticos e acadêmicos nas últimas duas décadas. O assunto não sai de pauta porque o cinema brasileiro continua produzindo novas variantes nessa fronteira, hibridismos e contaminações inusitadas. Partida, de Caco Ciocler, é um exemplo brilhante de mescla de registros, em que personagens e atores confundem suas características num road movie político e afetivo.

Partida é o filme escolhido pelo Cineclube Âncora, de Fortaleza, para abrir o ciclo “Fabulações no Real“. Quinzenalmente a partir desta terça (8/9), sempre online às 18 horas, a organizadora Kamilla Medeiros, cineasta e pesquisadora, vai receber diretores e pesquisadores em torno de documentários que se abrem a diversas formas de fabulação. “A expectativa é que tenhamos debates generosos sobre a temática das fabulações, das invenções narrativas e das fronteiras entre documentário e ficção, que nem sempre têm seus limites bem definidos, e isso pode ser muito bom!”, diz Kamilla.

Para debater Partida, ela convidou Caco Ciocler e o crítico que vos fala. A transmissão será gratuita no Facebook e no Youtube do Porto Iracema das Artes.  Leia aqui mais detalhes sobre a sessão. E aqui a minha resenha do filme.

Livro com jeito de conversa

Os cruzamentos de fato e ficção estão no centro de um livro lançado este ano pelo braço brasileiro da editora portuguesa Chiado. Já no título, o autor Piero Sbragia diz tudo sobre o que pretendeu se debruçar: Novas Fronteiras do Documentário: Entre a Factualidade e a Ficcionalidade. A partir de um grupo de filmes, realizadores e referências a textos teóricos, Sbragia reafirma uma ideia já bastante consolidada: a de que o documentário não se prende ao registro de fatos, nem pode almejar uma verdade absoluta. Ou seja, documentário não é só documento, mas também arte e representação.

Embora possa parecer coisa batida a princípio, a militância do autor – também ele um documentarista originário do telejornalismo – se legitima pela forma como vai buscar exemplos cristalinos da presença de traços e procedimentos da ficção no documentário. Ele faz derivações constantes entre a teoria existente sobre as relações entre realidade e suas reproduções (Bill Nichols principalmente, mas também recuando a Platão, Montaigne e avançando até Gilles Deleuze) e a análise de filmes específicos.

Obras como Andarilho, de Cao Guimarães (2007), O Sangue das Bestas, de Georges Franju (1949), e Cinemaníaco (Amator, 1979), de Krzysztof Kieslowski, merecem atenção detida, no intuito de evidenciar como factualidade e ficcionalidade se combinam no melhor cinema de diferentres épocas. Werner Herzog, Orson Welles e Agnès Varda são diretores abordados pelo terreno pantanoso em que atua(ra)m entre a captação e a fabulação do real.

A leitura é prazerosa pela maneira como Sbragia conduz o texto, semelhante a uma conversa entre o autor e os filmes, diretores e pensadores. O tom de conversa se instala ainda melhor na terceira parte do livro, composta de entrevistas com dez documentaristas brasileirxs. A cada um(a), Sbragia colocou questões particulares aos respectivos trabalhos e também as indagações que lhe interessavam para abrir o tema central do livro.

Extraiu declarações bastante substantivas de diretores como Susanna Lira, Geraldo Sarno, Cristiano Burlan e Orlando Senna. As considerações amplas sobre o ofício vão desde a austeridade proverbial de Eduardo Escorel (“O ser humano tolera muito mal a realidade e de forma geral essa é uma das grandes dificuldades do cinema documentário”) até o pragmatismo extremo de Eliza Capai (“Eu acho que tudo é uma questão de orçamento, que delimita o que é ficção e o que é documentário”). Passando pela afirmação quase subversiva de Maria Augusta Ramos: “Não acredito que se você coloca uma câmera na frente de alguém, a pessoa se transforma. Eu acho que isso é um grande papo furado. Nós somos vários, nós somos muitos, nós somos várias representações de nós mesmos em várias situações”.

Tendo ganho sua forma final já sob os maus eflúvios da pandemia e do atual governo, Novas Fronteiras do Documentário chega a suas conclusões finais com um manifesto de confiança na resistência do cinema do real. Uma resistência que se nutre da invenção permanente de uma linguagem porosa, aberta à subjetividade e à ficcionalização.

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