Festival do Rio 13/10

CANÇÃO AO LONGE + ROMÃO

Canção ao Longe

A possível beleza dos vãos

A ideia de sua casa se demolindo sobre ela assombra os sonhos de Jimena (Monica Maria). Jovem arquiteta trabalhando no projeto da nova sede de uma orquestra estadual, ela mora com a mãe, com quem não se identifica. Sente profundamente a ausência do pai, que vive no Peru e de quem ela pouco sabe, mas pressente que têm muito em comum. A fissura na família se reflete no seu retraimento e na procura pelo seu lugar no mundo. Esse lugar implica em sua tradição concreta: sair da casa materna e morar sozinha.

Canção ao Longe delineia um tênue retrato dessa moça, um pouco assim como quem dispõe as vigas de uma construção, mas não a preenche totalmente, deixando que os vãos fiquem expostos porque neles pode existir certa beleza. A beleza, no caso, está na fotografia cálida e cuidadosa de Ivo Lopes Araújo, na câmera que se desvia para um detalhe de mãos se afagando ou na conversa esparsa que se completa com um suspiro. É tudo muito delicado, muito silencioso, muito feminino.

Jimena, ou Nina para os íntimos, ensaia um romance com um músico, conversa com amigas sobre maternidade e indiferença masculina (uma bonita sequência provavelmente documental), investiga vestígios do pai num sebo que ele possuiu quando vivia no Brasil… Nenhum arroubo dramático, nenhuma descoberta grandiloquente. Seguimos Nina mesmo como quem ouve uma canção ao longe, cantada por alguém numa janela como que pra ninguém.

O som, aliás, é elemento muito presente na construção do filme, sobretudo nas sequências externas do centro de Belo Horizonte. O universo de Nina é constituído dessa ambiência urbana que a rodeia, mas da qual ela muitas vezes parece estar alienada. Os closes frequentes tentam capturar com razoável sucesso a sua vida interior.

Na equipe estão talentos surgidos nos anos 2000 em vários estados, como a diretora Clarissa Campolina, o corroteirista Caetano Gotardo, o diretor assistente e montador Luiz Pretti, e o diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo. Eles são da penúltima geração que renovou o cinema brasileiro e costumam colaborar nos respectivos trabalhos.

Uma nota à parte: O título do filme me remeteu inicialmente ao romance Música ao Longe, de Érico Veríssimo, que também trata de uma jovem em processo de autodescoberta e cujo nome, coincidentemente, é Clarissa.

Romão

Uma voz afirmativa

O curta de Clementino Júnior nos coloca face a face com uma das faces mais ativas da militância negra no Brasil. O jornalista e sociólogo João Marcos Aurore Romão (1953-2018) reuniu um vasto currículo nas áreas de Ciências Políticas e Ciências Sociais, com atuação em vários países. No Brasil, fundou o serviço SOS Racismo. No filme, o vemos em ação através de arquivos da Cultne.TV, mas principalmente falando em 2017 sobre sua própria imagem de militante “encrenqueiro”, sobre a invisibilidade dos homens pretos em sua cidade, Niterói, e sobre o advento de uma nova força – a das mulheres pretas.

Romão enche a tela com seu rosto vivaz, sua cabeleira farta e a voz afirmativa de quem passou a maior parte da vida fazendo frente a quem agredia os direitos humanos. Mas já ali, em 2017, um câncer no fígado preparava sua morte. Essa pequena homenagem de Clementino Jr. grita a necessidade de termos um filme que conte mais extensivamente a carreira e os feitos desse titã.

Um comentário sobre “Festival do Rio 13/10

  1. Obrigado pelas palavras, Carlos.
    Tenho me dedicado a “dar start” em temas que podem passar batido se personagens como essa entrarem na fila dos editais aguardando como serão apresentados a um público que usufrui de suas lutas mas não sabem ainda dar nome e sobrenome a quem as protagoniza.
    Viva a memória de Marcos Romão, e sua família de mulheres e homens fortes que, cada qual a sua maneira e em seu nicho, fazem a diferença!

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