Festival do Rio 12/10

CARVÃO + A FILHA DO CAOS

A HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL, de Dziga Vertov

QUANDO A COISA VIRA OUTRA, de Marcio de Andrade

Carvão

Sob o fogo da ambição

O carvão é madeira que se transforma ao passar pelo fogo. Embora a metáfora não seja explícita, é algo parecido que se passa com a pequena família de Irene, Jairo e o menino Jean quando uma agente do serviço de saúde visita sua casa isolada no interior de São Paulo, perto da divisa com Minas Gerais. Ela vem atender ao velho pai de Irene, que jaz numa cama supostamente sem esperança de recuperação. Diante do quadro, faz uma proposta inusitada: livrar-se do doente e colocar em seu lugar um traficante argentino que precisa de esconderijo temporário. Além de uma boa soma em dinheiro, que chega em boa hora para a crise vivida pela carvoaria doméstica que sustenta a casa.

É irônico que a proposta tenha partido de alguém ligado a uma instituição chamada “Saúde da Família”.  Pois o fogo da ambição tisna a consciência do casal e altera drasticamente suas vidas. O novo hóspede, viciado em cocaína, requer protocolos especiais de segurança e interfere de maneiras diferentes no espírito de cada um.

Do Teorema de Pasolini ao recente A Mesma Parte de um Homem, da brasileira Ana Johann, já vimos muitos filmes sobre o intruso que incendeia um núcleo familiar. Mas aqui esse núcleo já se mostrava disfuncional desde antes – e esse é um dos ingredientes do argumento que desafiam a verossimilhança. As relações homoafetivas soam disparatadas naquele cenário interiorano e rude, assim como a atração de Irene pelo forasteiro. Tudo isso ganharia em organicidade caso se apoiasse num lastro dramático bem resolvido e não entrasse no roteiro de maneira tão arbitrária. Da mesma forma, o montante da remuneração financeira parece exorbitante para a situação.

Para quem relevar incongruências como essas e se fixar nas qualidades de realização de Carolina Markowitz, há recompensas de sobra. Uma ambientação eficaz nos faz imergir no cotidiano da família e na tensão trazida pelo novo hóspede aos espaços da casa. O elenco preparado por Silvia Lourenço (assim como o de Paloma) insufla legitimidade a cada cena, com destaque para as entonações caipiras perfeitas de Maeve Jinkings e a verve do garoto-revelação Jean de Almeida Costa.

Carvão tem ainda a virtude de retratar personagens sem virtudes. A perversidade nascida da singeleza é um traço assustador. O gesto do pequeno Jean na última cena anuncia que o fogo se propaga facilmente sobre madeira fresca.

A Filha do Caos

Maria e os demônios

Um psicólogo ou um decifrador de esfinges seriam mais indicados para destrinchar o que se passa na tela em A Filha do Caos. De uma perspectiva mais leiga, o que vi foi uma atriz enredada em duas tramas paralelas, sintoma da esquizofrenia básica de todo intérprete dramático. No plano objetivo, Maria está ensaiando o papel de Jocasta para uma montagem de Édipo Rei e vivendo o luto pela perda de um filho ainda no ventre. Perto do final, há um momento em que o ator que faz Édipo bate insistentemente à porta da atriz. Seria penetrar na mãe o seu propósito?

No plano da psique, ela parece possuída pelos demônios do teatro e do cinema numa espécie de ciclo paranoico. Com frequência, dirige-se à câmera para pedir que se afaste (“saia daqui, isso não existe”).

Não por acaso, ela se chama Maria, epítome ao mesmo tempo de maternidade milagrosa e de perda precoce do filho. Dos parcos 76 minutos do filme, os primeiros 3 minutos e 20 segundos são consumidos numa zoom de recuo sobre a imagem do Anjo da Anunciação, ao som da Ave-Maria de Bach. Haverá também referências à religião judaica e à noção de culpa que é atribuída à civilização judaico-cristã. Ao fim do seu périplo entre os espelhos de uma realidade multifacetada, a branca e sofisticada Maria vai se deparar com sua contraparte preta e pobre, além de se comover com a visão de moradores de rua.

Difícil se comover com um filme que aposta nessa equação social um tanto frívola. Difícil também juntar as pontas de um exercício que se pretende livre e experimental, mas resulta simplesmente confuso. O diretor Juan Posada se vale das imperfeições do foco e da câmera na mão, bem como de uma montagem e uma edição sonora caóticas para fazer um filme que parece se desconstruir ao mesmo tempo que se constrói.

Nessa pororoca de ideias e intenções, destaca-se o namoro permanente da câmera com a bela Bruna Spínola, uma quase-sósia da jovem Nastassja Kinsky. Como em vários filmes brasileiros recentes, a atuação da atriz principal tem sido o melhor elemento de coesão e personalidade.

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