Luiz Rosemberg Filho nos deixou em maio deste ano, aos 76 anos. Nos últimos tempos, vinha publicando memórias e comentários incessantes no Facebook, reunidos por mim e por Gabriela Caldas no blog Crônica de um Cineasta, paráfrase do título do seu longa Crônica de um Industrial. Esses textos, que convivem no blog com links dos seus filmes, expressam bem a personalidade candente do seu autor, sua santa indignação contra o capitalismo, a ideologia de mercado, a televisão estúpida, o cinema oportunista e tudo o mais que lhe parecesse manifestações do fascismo cotidiano.
Louvava o gozo, a poesia, a beleza feminina, os poucos amigos que considerava fiéis (e não precisava muito para que logo virassem “traidores”) e as obras que amava, com destaque para os filmes de Godard (de quem organizou uma coletânea de textos no Brasil). Glauber, Straub, Pasolini, Welles, musicais hollywoodianos, Brecht, Bach. Sade, Benjamin…
Seus filmes eram dionisíacos, cheios de som e fúria, repletos de gana contra as hipocrisias burguesas e os signos do imperialismo econômico e cultural. Imagens, A$suntina das Américas, Jardim das Espumas, O Santo e a Vedete e Crônica de um Industrial destacam-se na sua fase de maior evidência, entre 1970 e 1982.
Em 18 anos de entressafra, produziu vídeos mais retóricos e conceituais, que geralmente serviam de veículos para seus textos sobre a política das imagens, geralmente lidos diante da câmera por mulheres belas. As colagens em papel também o mantiveram sempre ativo e participante.
A partir de 2014, Rosemberg encontrou no produtor Cavi Borges alguém disposto a bancar sua ressurreição no cinema em regime semelhante ao que usava na época do Cinema Marginal: baixos orçamentos e altas amizades. Com a “família Cavídeo”, ele voltou ao circuito dos festivais, dos cinemas, das homenagens, dos jovens fãs e até do teatro. Dois Casamentos e Guerra do Paraguay provaram que ele estava bem vivo e potente. Cavi e Christian Caselli enfeixaram sua obra no documentário Rosemberg 70 – Cinema de Afeto.
Por conta de uma desavença com Cavi, em 2018, a propósito de uma cena de OS PRÍNCIPES, seu penúltimo longa, Rosemberg voltou a isolar-se. Os problemas de saúde avolumavam-se, a tristeza o combalia e dava lugar a uma crescente amargura. Depois de Os Príncipes ele ainda filmou o monólogo inédito O Bobo da Corte.
Os Príncipes é mais um exemplo do seu cinema enragé, um jorro de virulência dirigido ao espectador e a si mesmo. Já na cena inicial, o personagem de Igor Cotrim, despido numa cama, aponta um revólver primeiramente para a mulher que dorme ao seu lado, depois para a câmera, e por fim para o interior da sua própria boca. A pulsão de destruição mira a tudo e a todos.
A maior parte do filme se passa numa longa noitada de dois homens devassos, os autoproclamados “príncipes” (Igor e Alexandre Dacosta) em companhia de duas putas com veleidades reflexivas (Patrícia Niedermeier e Ana Abbott). Uma delas, aliás, afirma que poderia ser Ministra da Justiça, o que condiz com o brasil de hoje. Eles protagonizam surubas num Ford Galaxy (as épocas parecem variar entre os anos 1960 e a atualidade), rodadas de sexo selvagem em meio a frutas – lembrando um momento de O Último Tango em Paris – atos criminosos hediondos e deambulações por um Rio de Janeiro noturno e semideserto.
O roteiro é uma sucessão de agressões recíprocas, inclusive no que diz respeito ao sexo. As mulheres ora resistem à degradação dos seus corpos pelos machos tóxicos, ora parecem compactuar com o jogo e disputar o protagonismo na arena sexual. Por um momento, a citação ao uso de Singin’ in the Rain em Laranja Mecânica ecoa na memória do espectador.
A aspereza do filme eventualmente abre espaços para um humor ácido ou paródico, como na sequência em que o quarteto invade a casa de uma família portuguesa e a utiliza como um palco para performances. A dança de Patrícia à moda de Isadora Duncan me pareceu um dos melhores momentos coreográficos da atriz no cinema.
Tonico Pereira tem participação ocasionalmente divertida, mas sua cena com Ana Abbott dá alguns passos além do mau gosto e exemplifica a aleatoriedade que está na base da construção da dramaturgia de Os Príncipes.
Rosemberg, como sempre, instrumentalizava a ação como veículo para suas perorações a respeito de um estado de coisas que afligia sua consciência inconformista. Frases como “sentimentos não valem nada”, “só a violência faz sentido em nossa existência” e “pior que a morte é suportar essa vida miserável” brotam da boca dos personagens como se fosse da sua. O cinema era uma tradução audiovisual do seu horror ao banal e dos sofrimentos – físicos e intelectuais – que o acometiam.
Na última sequência, Rosemberg usou um truque de roteiro para explicitar a politização da violência randômica e de gênero que presenciamos até então. Ao identificar a profissão dos dois “príncipes” e concluir o filme com fotos e áudios de repressão policial nas ruas do Rio, o cineasta deixou seu penúltimo grito contra a miséria política e o assassinato dos sonhos, sua matéria de luta desde sempre.