A menina que grita
SYSTEM CRASHER é um dos queridinhos da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Muito da admiração pelo filme vem da fabulosa atriz Helene Zengel, de 11 anos, que vive Benni, a quebradora do sistema. Benni tem um trauma que a faz entrar em surto quando alguém toca seu rosto. Mais que isso, ela canaliza sua profunda carência numa agressividade incontrolável e numa intolerância radical a qualquer coisa que lhe neguem. É a versão extrema da “criança cheia de vontades”. Vive em centros de acolhimento, dos quais é sucessivamente expulsa. Deseja desesperadamente voltar a viver com a mãe, que sofridamente a rejeita por não saber lidar com seu temperamento.
Uma luz parece surgir no meio do túnel quando um mediador escolar (Albrecht Schuch) resolve levá-la para três semanas numa floresta, longe de tudo o que lhe incomodava. A partir daí, insinua-se vez por outra uma virada de redenção, o que felizmente – para o filme – não ocorre. A dureza com que a diretora e roteirista Nora Fingscheidt trata o assunto é uma qualidade do filme, mas também pode ser um problema.
No fundo, trata-se de ver Benni repetir um mesmo padrão de comportamento: um aparente apaziguamento até que algo lhe seja negado ou alguém toque seu rosto para que ela grite, destrua coisas e cometa atos de grande violência contra outros e contra si mesma. Benni tem um potencial de ternura, que é seguidamente contrariado por seus atos. Essa estrutura sem muitas variações trai um certo desejo de explorar a síndrome da garota e testar nossos limites de empatia com a personagem. Tanto ela quanto o espectador – foi como eu, pelo menos, me senti – são como cobaias de um experimento psico-científico.
De resto, SYSTEM CRASHER é um forte objeto cinematográfico. A atuação do elenco é irretocável e a câmera na mão de Yunus Roy Imer insufla vivacidade e drama aos movimentos de Benni. Faço restrição apenas à montagem de fragmentos dissonantes nas cenas de surto, que me pareceu redundante.
Um importante dado paralelo é o retrato positivo do sistema de assistência social à criança na Alemanha. Um quadro de gente abnegada que trabalha no limite entre o profissionalismo e a compaixão pessoal. Benni e seu caso põem à prova a resistência desse sistema.
A mulher dos olhos de mel
Um dos fortes candidatos à indicação para o Oscar de documentário, HONEYLAND tem despertado indagações sobre seu estatuto de “filme do real”. Na verdade, trata-se de um híbrido. De um lado, é um documentário bastante planejado e filmado com cuidados mais comuns em filmes de ficção: construção de cenas em campo e contracampo, iluminação pictórica de interiores, sequências visivelmente encenadas. De outro, alimenta-se no favo de um cotidiano captado com legitimidade evidente.
Afinal, questões como essas tornaram-se irrelevantes desde que Flaherty filmou Nanook, o primeiro grande híbrido. Dali em diante, acumularam-se experiências nessa fronteira, bastando lembrar A Alma do Osso, de Cao Guimarães, ou os documentários de “realidade inventada” do dinamarquês Jon Bang Carlsen.
HONEYLAND, de Tamara Kotevska, Ljubomir Stefanov, enfoca a rotina rústica de Hatidze Muratova, uma apicultora das montanhas da Macedônia do Norte que vive da venda do seu apreciado mel no mercado de Skopje, a capital. Um belo dia ela vê seu santuário natural ser invadido por uma família de apicultores gananciosos.
A dinâmica do filme se instala no contraste entre, de um lado, a solidão de Hatidze e sua velha mãe enferma, seu trato carinhoso e harmônico com a natureza das colmeias; e, de outro, a algaravia grosseira da família nômade, sua imprudência e comportamento predatório. A princípio, a boa mulher estabelece um vínculo de solidariedade e simpatia, especialmente com as crianças. Mas a interferência danosa dos novos vizinhos vai ameaçar a convivência.
HONEYLAND é uma parábola cativante sobre os vínculos profundos e sustentáveis do homem com a Natureza, em oposição à mentalidade puramente extrativista. Ao mesmo tempo, é o retrato de uma mulher isolada do mundo, mas cuja vida rudimentar não lhe retirou a doçura e o afeto. O último plano do filme nos revela que também os olhos de Hatidze têm a cor do mel.
Pingback: Na corrida pelo Oscar do real | carmattos
Pingback: Meus filmes preferidos em 2019 | carmattos