A maquiagem horrorosa de Anthony Hopkins e o miscast de Scarlet Johansson não foram os maiores defeitos que vi em HITCHCOCK. Nem a caricatura do gênio, falando todas as piadinhas que se espera dele, num exagero de personagem autoconsciente. O pior é aquela fórmula de justificar o filme pelas coisas que o diretor estava vivendo no momento. O resultado é uma relação de causa e efeito bem medíocre, como se tudo fosse resumo e superfície. Os pesadelos de Hitch com o Norman Bates “real” são até engraçados, assim como achei interessante o fato de não aparecer nenhuma cena do PSICOSE original (embora a filmagem da cena do chuveiro seja inexplicavelmente montada como no filme). Apesar de toda mitologia, desconfio que Hitch não seja um bom personagem para recriar no cinema. Falta ver THE GIRL e talvez confirmar.
Chorei vendo a chegada do cantor Rodriguez à África do Sul no doc SEARCHING FOR SUGAR MAN, que deve ganhar o Oscar no domingo. Que história fantástica a desse compositor meio dylaniano, obscuro na América natal (descendente de índios e mexicanos), que vai fazer sucesso na luta contra o apartheid na África do Sul, mas sem saber de nada. Continuou vivendo sua vidinha de operário em Detroit até ser redescoberto por sul-africanos que o julgavam morto. O retorno definitivo de Rodriguez se dá com esse filme extraordinário, empolgante e comovente de Malik Bendjelloul. Mas uma coisa me intrigou: vendo o filme, lembrei-me que conhecia Rodriguez dos anos 70 – pelo menos uma canção, a belíssima I Think of You. Ela tocava nas rádios brasileiras e eu a tinha num cassete dos tempos de moleque. A coisa certamente não veio através de Cape Town. Logo, não é tão verdade que ninguém ouviu Rodriguez na América. Ou será que ele chegou aqui via latinos? Só sei que já trazia comigo a voz fanhosa e a cadência marcada de suas baladas.
A grande discussão em O VOO é entre o moralismo das tecnicalidades e a evidência dos fatos. Mesmo sendo um herói após o acidente, o piloto viciado em bebidas, tóxicos e mentiras tem que enfrentar a teoria da responsabilidade. Ele tem o pecado original, que o condena de qualquer maneira. A letra da lei pode ser burra e hipócrita na medida em que se impõe sobre os consensos. O filme é muito bem escrito, dirigido e interpretado (não só por Denzel Washington, mas também pela cativante Kelly Reily e o impagável John Goodman). A equação ética montada pelo roteiro vai muito bem até o final redentor, que não condiz com o personagem nem com as expectativas que alimenta. Uma pena, mas vale a pena. O filme é sóbrio, tenso, magnetizante e até certo ponto imprevisível.
Numa das cenas finais de ERA UMA VEZ EM ANATOLIA, o último e belo filme do turco Nuri Bilge Ceylan, um cadáver é submetido à autópsia. Não vemos o corpo sendo cortado e dissecado, mas somente as expressões faciais do legista, seu esforço em remover os órgãos, e o olhar do médico que acompanha os trabalhos. É um primor de uso do extra-quadro. Mas o filme inteiro, no fundo, é assim: enquanto investigam um crime, os homens investigam na verdade os seus próprios sentimentos e culpas. Nada do que acontece é mostrado, mas apenas os rebatimentos na consciência de cada um. O gênero policial é usado como pretexto para um exame de dramas íntimos, dos quais o crime em questão parece um espelho enviesado. Pode não ser o melhor filme do grande Ceylan, pode parecer estendido e vago demais para os impacientes, mas é como se passássemos uma noite densa dentro de sonhos alheios.
TRÊS RETORNOS: 1. Fernanda Montenegro não mencionou na matéria de O Globo de hoje, mas Walter Salles contou na entrevista que me deu no Canal Brasil que tem um projeto de voltar a filmar com ela. 2. Eduardo Coutinho voltou recentemente aos personagens ainda vivos de CABRA MARCADO PARA MORRER. Gravava um extra para o DVD do filme, que enfim vai sair ainda este ano. 3. Em 2010, Nelson Pereira dos Santos retornou aos cenários de VIDAS SECAS, em Palmeira dos Índios e Minador do Negrão, em Alagoas. Revisitou a casa onde Fabiano morou com sua família e reencontrou o menino menor, 47 anos depois das filmagens. A viagem foi filmada, e esse material, se tudo der certo, vai ser exibido na Ocupação Nelson Pereira dos Santos, no Itaú Cultural (SP), em agosto. Mar 2013