Pílulas 46

UM ESTRANHO NO LAGO (vulgo “Pirocas ao Vento”) foi concebido como um filme maníaco. Cada sequência equivale a um dia, que começa mais ou menos da mesma forma (a chegada do carro de Franck) e se desenrola em tomadas repetitivas, sempre ao redor do lago. A cena final reafirma a condição de Franck de prisioneiro do lago, vale dizer do seu próprio desejo. Esse aspecto maníaco se reproduz nas práticas sexuais dos gays que frequentam o lugar, sem outros laços aparentes e entregues à realização muito rotineira do sexo. Do masturbador obsessivo ao rapaz que busca uma relação um pouco mais romântica e “normal”, passando pelo observador supostamente desinteressado, é a interdição que dá as cartas bem mais que a liberalidade. O paroxismo da interdição é a morte, que progressivamente transforma o filme de idílio gay em thriller de suspense. Nesse ponto, UM ESTRANHO NO LAGO reforça o velho conceito de “Cruising/Parceiros da Noite” associando a homossexualidade clandestina ao perigo de morte e ao impulso de autodestruição. Mas não foi isso que mais me indispôs com o filme, e sim a gratuidade da trama, a implausibilidade da relação entre Franck e Michel, a linguagem rigorosa utilizada num argumento inconsistente. Quanto às pirocas, bem-vindas sejam num cinema machista que só dá vez às piriquitas.

ALÉM DA FRONTEIRA (em pré-estreias no Rio) tem temática gay, mas está longe de merecer a tarja de “filme gay”. É um thriller policial-político que expõe a intolerância das famílias palestinas e do serviço secreto israelense. O palestino Nimr se apaixona pelo israelense Roy e os dois passam a viver na carne as tensões da relação entre os dois povos. Fica claro como os israelenses operam, deixando aos próprios palestinos o trabalho sujo de eliminar os seus “traidores”. A homofobia no mundo árabe se equivale à ideologia de segurança nacional no lado de Israel. Logo, ser um gay palestino é estar entre dois fogos. Nesse filme tenso, a meu ver prejudicado apenas pelos poucos recursos do ator que vive Nimr, o amor tenta desesperadamente subjugar o ódio e o medo.   

A crítica internacional caiu de pau em cima de ADORE, filme de Anne Fontaine sobre duas amigas de infância, unidas por toda a vida, que se apaixonam pelo filho uma da outra. Não vi nada de tão ruim assim. Não sei até que ponto o roteiro de Christopher Hampton simplificou a novela homônima de Doris Lessing para que a trama evoluísse através de tantas simetrias e simultaneidades que acabam justificando o rótulo de melodrama. Mas nada contra um melodrama de qualidade como esse. Naomi Watts e Robin Wright se esmeram nos papéis das “mães perfeitas” a que se refere o título internacional. A paixão cruzada vai tocar em vários tabus, concretizando incestos e homossexualidades sublimadas. A transa se estende por duas gerações, com piques dramáticos, dilemas éticos e retomadas irresistíveis. O que para alguns pode soar como fixação doentia para outros pode parecer um ato de liberação de interdições familiares e etárias. O isolamento dos quatro personagens numa praia australiana ajuda a facilitar as coisas do ponto de vista social, mas o filme vale como um estudo quase entomológico de dois romances desafiadores de várias convenções.    

Ricardo Miranda é um diretor e montador identificado com o cinema de invenção. Ele montou A Idade da Terra e diversos filmes do Arthur Omar, por exemplo, e dirigiu o flaubertiano-tropical Djalioh, entre muitas outras coisas. Mas ele tem também uma faceta menos experimental e mais educativa em seu trabalho na TV Brasil, onde dirige o segmento de interprogramas. No ano passado, ele fez para a TV o doc média-metragem STEFAN ZWEIG – PARAÍSO UTÓPICO, que discute o famoso livro de SZ sobre o Brasil e o misterioso suicídio duplo que pôs fim à vida dele e da companheira Lotte. Em meio a algumas especulações, surge até a hipótese (estapafúrdia, creio) de as mortes terem sido induzidas por algum comando nazista no Brasil. Mais consistente é a anotação de Kristine Michaelis: o título original do livro é “Brasil, um País do Futuro”, e esse pequeno artigo indefinido faz muita diferença. De qualquer maneira, o livro é um guia de viagem que apresenta o Brasil como antítese idealizada da Europa em crise no fim dos anos 1930. O programa abusa um pouquinho das cenas de arquivo, mas contém informação relevante, uma bela narração de trechos do livro por Helena Ignez e um bom aproveitamento de trechos de filmes baseados em livros de Zweig. 

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