Rever um filme, por Comolli

Trecho do texto “Post-scriptum – No quarto de Moebius”, in Ver e Poder, de Jean-Louis Comolli (Ed. UFMG, 2008)

Nunca vemos duas vezes o mesmo filme. Experiência sempre renovada, surpresa que volta, rever um filme é transformar a relação que se construiu com ele, um dia, uma vez. Eu mudei, o filme também. Os outros me dirão: não, os filmes estão fixados de uma vez por todas na película, é sempre o mesmo filme que um projetor projeta. Sem dúvida. Mas a maioria dos filmes, senão todos, são construídos como palimpsestos, camadas de formas e de sentidos superpostos e cruzados, que o projetor anima ao mesmo tempo, mas que não chegam ao mesmo tempo à consciência do espectador (entendo, aqui, por consciência não a consciência crítica, mas o estágio das percepções). Por quê? Antes de tudo, há a espessura poliforma do condensado cinematográfico: simultaneamente luzes, sombras, imagens, sons, figuras e paisagens, músicas, falas e silêncios, raccords, ângulos, movimentos, fixidez, ritmo, lentidões e acelerações… Tudo isso, que demandou muitas operações sucessivas para se inscrever em um conjunto (filmagem, montagem, mixagem…), não pode ser recebido de uma só vez. Dessa sequência de inscrições (trata-se, certamente, na operação cinematográfica, de uma físico-química da impressão, gravação de uma placa sensível pela luz), o espectador pode apenas construir uma reprise ao mesmo tempo parcial e sintética. Inevitavelmente, uma parte do objeto projetado está perdida – para esta sessão. Mas a fragilidade da relação espectador-filme tem a ver com um fator ainda mais decisivo: a lógica do apagamento e da reinscrição que está na base do mecanismo cinematográfico (fotograma ou tramas): o que se inscreve já é complexo, complexifica-se ainda mais pelo fato de que essa inscrição, uma vez realizada, é logo apagada por aquilo que vem se inscrever logo depois. O fotograma e a “imagem” são seres precários, aparecem apenas para desaparecer. A tela se esvazia para se preencher. Querer reter alguma coisa de uma tal aspiração ao esquecimento, querer fixar esse impulso de evaporação, já é estar fadado ao fracasso. Tal é o não-controle estrutural do espectador, triste herói, por sua vez, da fábula das danaides: fuga sem fim daquilo que vem. O palimpsesto cinematográfico não se estende no espaço, ele se redobra no tempo. Ele próprio se apaga, não por acumulação de camadas sucessivas, mas por apagamento de cada camada pela seguinte. A apreensão dessa cintilação não se dá de uma vez por todas. Dito de outra maneira, no cinema há apenas a primeira vez, mesmo quando alguém sabe de cor o seu filme preferido.

Jean-Louis Comolli

3 comentários sobre “Rever um filme, por Comolli

  1. Carlos,

    Atualmente tenho privilegiado rever na tela grande filmes que gostei muito, como “O Grande Hotel Budapeste”, “Amar, Beber e Cantar”,” Instinto Materno”, “O Lobo Atrás da Porta”
    “Praia do Futuro” e afins. Pode estrear vários filmes, mas enquanto não revejo estes, não sossego, E se perder outros, paciência. Mas alguns cinéfilos que conheço batem ponto em todos os filmes, até nos que está na cara que vão ser algo muito ruim. como “Os Mercenários 3”. Há quem pegue o “Rio Show”” e vai riscando o que já foi visto….fazendo malabarismos de horários para ver os demais…

    Em casa tenho um acervo de DVDs fabuloso. Dentre eles há vários clássicos que nunca assisti , filmes que quero rever ( incluindo clássicos). Mas preciso mais umas duas reencarnações. para dar conta de tudo…Ainda mais que estou comprando as excelentes coleções da Folha de São Paulo, com textos curtos mas muito bem escritos, elucidativos, traçando panoramas e contextos. E gosto de rever sempre o primeiro capítulo e o último dos DVDs. Algumas ótimas descobertas podem surgir desta atitude, por circularidade..

    Tenho memória em muitos casos das condições em que assisti um filme desejado. Conforme me sentia, se não for bem disposto*, procuro rever o filme. Isto já aconteceu algumas vezes, principalmente em em filmes vistos em sessões da meia noite e às uma hora da manhã já estava disperso, cansado. Os do Festival do Rio então, vistos em corre-corre, dependendo do interesse, revejo todos quando estreiam. Este “Amantes Eternos” de Jim Jarmusch assisti no Festival do Rio 2013, com cansaço e tédio. Como é um diretor que me interessa muito, vou rever.

    Tenho revisto em casa filmes que imaginava conhecer bem e me surpreendo com novas descobertas. Por exemplo: em “Fale com Ela”, não é á toa que Almodóvar vai dando nome aos casais e vem uma história deste encontro. Ao fim do filme outro casal é anunciado, nos passando a ideia de que haverá ainda um novo encontro e uma nova história que envolverá o escritor de guias turísticos que perdeu a, amante toureira em coma, com a bailarina que saiu do coma em que estava, mesmo que isto contrarie a professora vivida por Geraldine Chaplin.

    Foi revendo “Casablanca” em casa que me dei conta do quanto é tão significativa e persuasiva a fala “Nós sempre teremos Paris”.

    Revi vários filmes de Stanley Kubrick em Mostra no IMS. neste 2014. “De Olhos Bem Fechados” que eu tinha como um filme menor ( achava o final um tanto trivial), revelou-se ao nível de outros do autor, pois o trivial é só um momento, um cessar-fogo. O inferno conjugal pode voltar…”Laranja Mecânica” que alguns dizem que envelheceu, está vivíssimo. É um fabula cruel e então as grandes coincidências são cabíveis. E não estamos nós imprensados entre pseudo- esquerda e direita, como Alex no filme ?

    Abs,
    Nelson

    * Sempre me intrigou como faz um crítico de Cinema que tem de escrever um texto num certo prazo curto, não podendo rever o filme em cabine e no dia em que o assistiu, não estava bem, brigou com a mulher, teve de ir a um velório, suas contas ficam no vermelho, periclitantes….etc……..

    • Olá Nelson. Eu também tenho uma pauta de revisões enorme que sei que jamais vou cumprir. Até porque a pressão dos filmes novos e dos ainda não vistos é sempre maior que o tempo necessário para rever os que merecem. É essa a nossa sina de cinéfilos dedicados. Um abraço.

  2. Brilhante Comolli, sempre atento ao seu tempo, e as variantes de cada visita a um filme. Nao e que ele tem razao, cada revisita e sempre uma “primeira vez”.A militancia tem suas virtudes obvias.

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