Em Arca Russa, Alexander Sokurov usou um museu, o Hermitage, para falar da História. Em Francofonia: o Louvre sob Ocupação, ele usa a História para falar de um museu. Em tudo, esse filme é um contraponto daquele. Em vez de um traveling sem cortes pelas dependências de um prédio, Sokurov faz um passeio cheio de cortes pelas ideias a respeito da História, das guerras e do destino da arte.
O formato é o do filme-ensaio tão praticado por Godard, Kluge, Chris Marker, Raul Ruiz e Agnès Varda. Uma série de materiais heterogêneos – imagens de arquivo, encenações, fantasias, cenas autorreflexivas – são enfeixados pela narração subjetiva do próprio diretor, em que as perguntas são tão numerosas quanto as afirmações. Francofonia é uma reflexão pessoal, em que o próprio Sokurov aparece ora manuseando fotos de época, ora falando pelo Skype com um certo capitão de navio que conduz obras de arte por mares turbulentos, ora conversando diretamente com seus personagens. Num dado momento, é Napoleão Bonaparte, sob cuja égide o Louvre cresceu, quem puxa Sokurov pelo braço para mostrar a si mesmo num quadro e, diante da Monalisa, exclama “C’est moi!”. Em outra passagem, a voz do diretor relata a dois personagens como seria o futuro deles.
O foco central é a ocupação da França pelos nazistas em 1940, que gerou imagens assombrosas de uma Paris vazia. Sokurov quer contar a história da tácita cumplicidade entre o diretor do Louvre na época, Jacques Jaujard, e o alemão Franz Wolff-Metternich, encarregado de inventariar as obras que haviam sido retiradas do museu para serem resguardadas em castelos nas redondezas de Paris. Graças a essa dupla, o acervo do Louvre não foi expatriado para a Alemanha. A decisão nazista de poupar Paris, em função do colaboracionismo, contrasta com a destruição promovida na antiga Leningrado, que resistia. As obras do Hermitage só foram salvas porque também foram escondidas a tempo. Essa história foi contada recentemente no docudrama Diplomacia, de Volker Schlöndorff.
Sokurov relaciona esses fatos por meio de uma narração meditativa e quase ininterrupta. Ele transita com grande liberdade entre os diversos blocos de ideias. Os tempos de Napoleão, da II Guerra e da atualidade se projetam uns nos outros, entre filmes antigos e voos de drone sobre a Paris de hoje. A reconstituição do passado com atores (incluindo a Marianne símbolo da República francesa) aparece como um filme em processo, com batida de claquetes e a banda sonora correndo na lateral da imagem. Particularmente bonito é o trecho que mostra como o Louvre conta a sua própria história através de quadros.
Francofonia é um belo e criativo elogio à cultura europeia (o que seria das cidades sem seus museus?) e aos homens de consciência que pouparam as obras de arte da barbárie.
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